
Com estreia celebrada na seleção oficial do Festival de Veneza, o longa A Mulher que Nunca Existiu (Aïcha, no original), do cineasta tunisiano Mehdi Barsaoui, parte de uma premissa potente: e se a única chance de viver for desaparecer? A proposta é provocadora — uma jovem que sobrevive a um acidente fatal e decide abandonar sua vida, seu nome, sua história —, mas o desenvolvimento da trama, embora envolvente em muitos momentos, oscila entre o drama íntimo e a denúncia social sem encontrar o equilíbrio ideal.

Aya, interpretada com intensidade contida por Lili Farhadpour, é uma mulher nos seus vinte e poucos anos, presa a uma existência sufocante no sul da Tunísia: mora com os pais, vive sob regras conservadoras, e seu trabalho em um hotel turístico é sua única conexão com o mundo exterior. Quando a van que a transporta diariamente sofre um grave acidente, e ela se vê como única sobrevivente, surge a primeira reviravolta: a chance de recomeçar do zero. Aya foge, muda de cidade, assume outra identidade e se torna Aïcha. É aí que o filme começa — e também onde ele se divide.
A nova vida, feita de silêncios, receios e pequenos rituais de adaptação, é apresentada com sensibilidade. Há uma riqueza nos detalhes, no modo como a personagem aprende a caminhar em um novo ritmo, como se ajusta ao anonimato, como testa a liberdade que nunca teve. No entanto, a narrativa parece hesitar quando se trata de expandir essa experiência para além do seu drama pessoal.
A segunda grande virada da trama — quando Aïcha testemunha um caso de violência policial — traz de volta a tensão social e política que o filme ensaia explorar. Mas essa subtrama, que poderia alavancar o longa para um outro patamar de contundência, é tratada com um certo distanciamento, quase como se Barsaoui temesse deixar o terreno seguro do drama existencial e mergulhar mais fundo na crítica sistêmica.
O resultado é um filme visualmente refinado, com direção segura e atuações intensas, mas que parece podar o próprio impacto. Os dilemas morais da protagonista — entre manter sua liberdade ou se tornar testemunha de uma injustiça — são relevantes e dolorosos, mas faltam camadas ao conflito. O roteiro não se compromete totalmente nem com a transformação individual, nem com o embate político. Fica entre os dois, e acaba enfraquecendo ambos.
Outro ponto que merece atenção é o ritmo. A primeira metade do filme, focada na fuga e reinvenção de Aya, é envolvente e bem conduzida. Mas ao chegar ao segundo ato, o enredo perde um pouco de fôlego, como se não soubesse exatamente para onde conduzir sua protagonista. Faltam tensão dramática real, escolhas difíceis visíveis em cena, e consequências mais agudas.
Ainda assim, A Mulher que Nunca Existiu é um filme importante. Porque fala, mesmo que com moderação, de uma geração de mulheres árabes que tentam escapar de narrativas impostas, de vidas pré-determinadas, de ausências que doem mais do que a presença. É um filme que merece ser visto, debatido, reconhecido — mesmo que, no fim, deixe a sensação de que poderia ter ido mais longe, gritado mais alto, e feito da sua protagonista muito mais do que apenas uma metáfora da invisibilidade.
















