
“Nem inteligente, nem artificial.” A frase, carregada de sarcasmo e ceticismo, resume em poucas palavras a visão provocadora de Miguel Nicolelis sobre o que hoje é considerado uma das maiores revoluções tecnológicas do século: a Inteligência Artificial. Mas, para ele, não passa de um nome pomposo dado a um conjunto de estatísticas sofisticadas. Essa crítica, direta e desconcertante, já dá o tom do que promete ser uma das edições mais incendiárias do Roda Viva em 2025.
Na próxima segunda-feira, 28 de julho, às 22h, a TV Cultura transmite ao vivo a entrevista com um dos neurocientistas mais renomados — e controversos — do mundo. Conhecido por romper fronteiras entre ciência, filosofia e política, Nicolelis não mede palavras quando o assunto é o futuro da humanidade, a ética na tecnologia ou o papel da ciência na transformação social. Seu retorno ao centro da roda acontece em um momento crucial de debates sobre o avanço da IA, o papel do cérebro humano no século digital e o lugar do pensamento crítico em um mundo hiperconectado, mas nem sempre lúcido. As informações são da TV Cultura.
A entrevista poderá ser acompanhada também pelo app Cultura Play e nas redes sociais oficiais da emissora — YouTube, X (antigo Twitter), TikTok e Facebook. E, como manda a tradição do programa, o cartunista Luciano Veronezi estará ao vivo registrando em traços os momentos mais emblemáticos da conversa.
Um brasileiro que ouviu o cérebro
Miguel Ângelo Laporta Nicolelis nasceu em São Paulo, em 27 de março de 1961. Filho da escritora Giselda Laporta Nicolelis e do juiz Ângelo Nicolelis, cresceu em um ambiente que valorizava o conhecimento e o pensamento crítico. Desde cedo, aprendeu a questionar verdades prontas — uma postura que carregaria consigo ao longo da vida.
Formado em Medicina pela USP, Nicolelis escolheu um caminho pouco convencional: queria ouvir o cérebro, entender como os neurônios se comunicavam em tempo real, e, mais ousadamente, como essa comunicação poderia ser decodificada e traduzida em ação física. Na virada dos anos 1990, seu trabalho com neuroengenharia começou a ganhar visibilidade nos Estados Unidos, onde se estabeleceu como pesquisador e professor na Duke University.
Foi pioneiro no desenvolvimento de interfaces cérebro-máquina, tecnologia que permite a pacientes com paralisia movimentarem membros robóticos ou próteses a partir da leitura da atividade elétrica cerebral. Um feito que rompeu com paradigmas científicos e colocou seu nome entre os mais citados da neurociência global.
O chute que o mundo nunca esqueceu
Se há um momento que sintetiza a ousadia de Nicolelis e sua visão de futuro, ele aconteceu em 12 de junho de 2014. Na abertura da Copa do Mundo, no estádio do Corinthians, em São Paulo, um jovem paraplégico deu o chute simbólico inicial da partida com o auxílio de um exoesqueleto robótico controlado por sinais do próprio cérebro.
Foi a concretização do projeto Andar de Novo, coordenado por Nicolelis no Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra, em Natal (RN). A imagem correu o mundo: um brasileiro, usando um aparato futurista, demonstrando que era possível caminhar — ainda que simbolicamente — sem movimentar os próprios músculos.
Mas a comunidade científica, como de costume, dividiu-se. Algumas revistas classificaram a demonstração como “limitada” ou “publicitária”. Houve quem aplaudisse o avanço da interface, e quem a visse como sensacionalismo. Nicolelis, no entanto, permaneceu fiel ao seu objetivo: “Foi um passo simbólico para milhões de pessoas no mundo que precisam saber que a ciência pode oferecer esperança.”
A política da ciência
Não é de hoje que Miguel ultrapassa as barreiras do laboratório. Durante a pandemia de Covid-19, foi uma das vozes mais ativas na imprensa, em redes sociais e em artigos de opinião. Seu posicionamento crítico frente às políticas públicas negacionistas do governo Bolsonaro o transformou em alvo de ataques, mas também em referência para setores que defendiam a ciência como pilar das decisões emergenciais.
Nicolelis coordenou, junto a outros pesquisadores, estudos epidemiológicos no Brasil e ofereceu alternativas ao colapso do sistema de saúde, propondo lockdowns regionais e testagens em massa. Em muitos momentos, sentiu que sua voz foi ignorada — algo que, segundo ele, custou vidas. “Fomos preteridos por um governo que escolheu o caos como política”, declarou em entrevistas à época.
Essa atuação reforçou uma faceta pouco explorada da ciência brasileira: a de cientistas que não se escondem em publicações técnicas, mas que falam à sociedade com clareza, assumindo os custos e riscos da exposição pública.
A entrada na ficção: “Nada Mais Será Como Antes”
Em 2025, Nicolelis surpreendeu ao lançar seu primeiro romance de ficção: Nada Mais Será Como Antes. A obra, um thriller distópico recheado de reflexões filosóficas e críticas sociais, mostra um futuro no qual a humanidade se vê refém de uma tecnocracia global controlada por algoritmos.
Inspirado em experiências reais e em sua leitura crítica do presente, o livro propõe uma reflexão inquietante: e se estivermos entregando nosso destino a máquinas que não pensam, mas decidem? O título, emprestado da canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, é um manifesto: não há retorno possível quando cruzamos certos limiares éticos e tecnológicos.
A recepção foi positiva. Além de garantir uma adaptação cinematográfica em fase inicial, a obra consolidou Nicolelis como um intelectual multifacetado, que transita entre ciência, política e arte com fluidez — algo cada vez mais raro em um mundo de especialistas isolados.
Uma crítica à inteligência que não pensa
Um dos pontos mais controversos — e mais aguardados — da entrevista no Roda Viva será o debate sobre Inteligência Artificial. Nicolelis tem sido uma das vozes mais contundentes contra o “fetichismo tecnológico” em torno da IA. Para ele, atribuir inteligência a algoritmos é um erro conceitual grave.
“Não há nada de artificial na inteligência, e muito menos inteligência nesses sistemas”, afirma. “Eles apenas identificam padrões estatísticos. Não têm consciência, não têm emoção, não sabem que existem. Nós, humanos, sabemos. Essa é a diferença fundamental.”
Ele reconhece os avanços da IA em tarefas específicas, como diagnósticos por imagem ou previsões de tráfego. Mas alerta para o risco de projetarmos nesses sistemas capacidades que eles não possuem. “O problema não é o que a IA pode fazer. É o que as pessoas acreditam que ela possa fazer. Esse descompasso pode custar caro.”
A participação de Nina da Hora, pesquisadora de tecnologia com foco em ética e inclusão, promete tensionar e enriquecer essa discussão. Nina tem pautado o debate sobre racismo algorítmico e governança digital no Brasil e no exterior, e deve trazer contrapontos à visão de Nicolelis, ainda que ambos partam de preocupações semelhantes sobre os rumos da tecnologia.
A bancada que pensa
O programa desta segunda reunirá uma bancada plural e qualificada para entrevistar Nicolelis. Além de Nina da Hora, estarão presentes:
- Denis Russo Burgierman, jornalista e escritor, conhecido por traduzir ciência com linguagem acessível;
- Pedro Teixeira, repórter da Folha de S.Paulo especializado em tecnologia e inovação;
- Petria Chaves, da CBN, com uma abordagem mais sensível e humanizada;
- Rafael Garcia, jornalista de ciência do jornal O Globo, com olhar técnico e preciso.
A presença desses nomes sugere uma entrevista que deve ir além do factual. Espera-se que temas como espiritualidade, paternidade, desigualdade social e o papel do Brasil na ciência global também estejam na pauta.
O cérebro coletivo como modelo de civilização
Entre as contribuições mais ousadas de Nicolelis está a ideia do “cérebro coletivo”. Ele propõe que, assim como neurônios operam em conjunto para formar pensamentos, emoções e ações, sociedades humanas deveriam aprender a agir como redes neurais complexas, em sincronia.
Essa teoria, que extrapola a biologia e entra no campo da filosofia política, defende a cooperação como elemento central da evolução humana. Em tempos de hiperindividualismo e tribalismo digital, sua proposta soa quase utópica — mas profundamente necessária.
“O futuro da humanidade depende da nossa capacidade de pensar em conjunto, não de competir uns com os outros. A natureza do cérebro é coletiva. E nós esquecemos disso”, afirma.
Um legado que inspira
Nicolelis é um cientista, mas também é um educador. Em Natal, no Instituto Santos Dumont, ele investe há mais de uma década na formação de jovens de comunidades periféricas. Lá, ciência é também afeto, inclusão e cidadania. O Instituto oferece desde atendimento em reabilitação até cursos técnicos e oficinas de robótica.
Esse lado menos visível de sua atuação talvez seja o mais transformador. Ele não quer apenas construir máquinas comandadas por pensamento — quer construir uma sociedade em que todos tenham acesso ao pensamento crítico. E, para isso, aposta na educação, na ciência cidadã e na autonomia local.
















