
Hoje, 31 de julho, chega às telonas brasileiras uma obra que não grita, mas sussurra. Que não entrega respostas fáceis, mas convida à contemplação. “Nada”, o primeiro longa-metragem solo de Adriano Guimarães, estreia em cinco capitais — São Paulo, Recife, Salvador, Fortaleza e Belo Horizonte — trazendo uma proposta rara: desacelerar. Escutar. Sentir.
O projeto, que já passou por uma respeitável trajetória em festivais dentro e fora do país, se afasta das fórmulas prontas para apostar num tipo de narrativa que reverbera pela delicadeza. É o tipo de filme que caminha devagar, olha ao redor e encontra beleza até mesmo no que parece insignificante. Um convite à presença, à escuta, ao silêncio.
Muito além da história
A trama gira em torno de Ana, artista plástica interpretada com notável sutileza por Bel Kowarick, que retorna à fazenda da infância para reencontrar a irmã, Tereza (vivida pela dançarina e atriz Denise Stutz), agora fragilizada por uma condição misteriosa que altera sua percepção do real. Mas é importante dizer: este não é um filme que se sustenta por reviravoltas ou explicações racionais. O que interessa aqui não é o “o que” acontece, mas “como” aquilo ecoa dentro da gente.
Adriano não parece preocupado em oferecer clareza — e isso é libertador. Em vez de detalhar, ele insinua. Em vez de narrar com pressa, ele observa. É como se, ao entrar na casa onde Ana cresceu, o público também fosse convidado a respirar mais fundo, a perceber o chiado de um rádio distante, o ranger de uma porta, a brisa cortando a poeira do tempo.
Desde os primeiros quadros, percebemos que NADA pertence a um tipo de cinema raro — aquele que confia na imagem, na pausa, na sugestão. A direção de fotografia de André Carvalheira faz questão de nos manter próximos: o foco nos rostos, nas rachaduras das paredes, no grão da luz que entra pela janela. Um olhar que transforma pequenos detalhes em portais sensoriais.
O desenho de som, assinado por Guile Martins, é uma peça fundamental na engrenagem emocional da obra. Não se trata apenas de acompanhar o que se vê, mas de criar texturas invisíveis. Em muitos momentos, é o som que nos guia, que indica presenças ocultas ou memórias que insistem em permanecer. Há barulhos que parecem vir de dentro da casa… ou de dentro de nós.
O peso do que não está mais ali
Mais do que um reencontro entre irmãs, NADA fala daquilo que se foi — mas nunca deixou de reverberar. A infância, o pai ausente, a própria sanidade que escapa por entre os dedos. É como se o tempo tivesse deixado rastros que não se apagam, fantasmas que não assustam, mas pairam. Invisíveis, porém densos.
A fazenda onde se passa boa parte da ação parece suspensa no tempo, como se resistisse a seguir adiante. E nesse espaço quase imobilizado, os personagens se arrastam entre lembranças e sensações que não sabem nomear. O tempo aqui não corre, ele se dobra.
Para Guimarães, o projeto nasceu de uma inquietação com “memórias que insistem em retornar”, como ele próprio definiu em entrevistas. Não são lembranças escolhidas, mas aquelas que nos invadem sem pedir licença. O filme, portanto, não tenta organizar o passado — ele o acolhe em sua desordem silenciosa.
Literatura, teatro e o invisível
Quem conhece a trajetória do diretor sabe que ele vem do teatro e tem uma forte ligação com a literatura. Isso transparece em NADA, mas não de forma explícita. As influências estão ali, misturadas à poeira da narrativa. Manoel de Barros, por exemplo, aparece como referência — não em citações, mas no espírito de observar grandeza no ínfimo. Já Samuel Beckett ecoa nos silêncios, na repetição, no absurdo cotidiano.
“Quando li o Livro sobre Nada, do Manoel, tive a impressão de que ele estava escrevendo sobre um lugar dentro de mim”, disse Guimarães em uma das exibições do longa. “O filme tem muito disso: coisas que não precisam servir pra nada, mas que são. Que estão ali e pronto.”
Essa percepção do ordinário como extraordinário costura toda a obra. Não há explicação para a condição de Tereza. Tampouco se fala sobre a origem de um dispositivo tecnológico que aparece na trama. Nada é mastigado. E tudo, paradoxalmente, é sentido com força.
Reconhecimento nos festivais e aplauso da crítica
Antes de chegar às salas comerciais, o longa-metragem percorreu um caminho respeitável. No Festival de Cinema de Tiradentes, ainda como projeto em construção, já chamou atenção e levou o prêmio de Work in Progress. No circuito internacional, passou por países como Espanha, Índia, Rússia, Argentina, México e Colômbia, recebendo menções honrosas e prêmios importantes — como o WIP Iberoamericano e o LatAm Cinema, no Festival de Málaga.
No Brasil, brilhou no Festival de Brasília, garantindo os troféus de Melhor Direção, Direção de Arte e Edição de Som — reconhecimento ao cuidado artesanal da obra, feita com precisão quase cirúrgica nos detalhes.
Para o crítico Bruno Carmelo, do Portal Meio Amargo, o longa cria “uma hipnose do olhar”, como se estivéssemos presos em um tempo que não avança. Ele destaca que NADA “não precisa decifrar seus enigmas, apenas sugeri-los”.
Quem vai gostar de assistir?
Não é uma obra para quem busca ação, clímax ou respostas. Talvez, inclusive, provoque incômodo em quem espera por lógica. Mas quem se permitir entrar nesse universo sensorial e subjetivo, muito provavelmente sairá transformado — ou, no mínimo, mexido.
“NADA” é um convite para lidar com o não dito. Com a falta. Com as perguntas que ninguém responde. É para quem já sentiu saudade sem saber do quê. É para quem escutou um barulho e não conseguiu dormir. Para quem carrega lembranças que não se explicam, mas seguem vivas.
Elenco e equipe em sintonia com o invisível
O trabalho de Bel Kowarick é daqueles que ficam na pele. Sua Ana não precisa de grandes falas para transmitir dor, saudade ou estranhamento. É tudo no olhar, no modo como caminha pela casa, nos silêncios carregados de sentido. Já Denise Stutz, com sua trajetória na dança, entrega uma Tereza quase translúcida — vulnerável e, ao mesmo tempo, cheia de presença.
O time técnico reforça essa atmosfera cuidadosamente construída. A montagem de Sérgio Azevedo aposta no ritmo lento, mas nunca entediante. O cuidado com a luz, os sons, os vazios — tudo colabora para que o espectador mergulhe num estado entre o sonho e a lembrança.
















