Instinto de Eternidade | David O. Silveira Jr. propõe reflexões sobre espiritualidade e a busca por sentido

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Das ruas fervilhantes do subúrbio carioca ao misticismo que move milhares no Círio de Nazaré, em Belém, a ficção científica brasileira ganha um novo fôlego com o livro “Instinto de Eternidade”, de David O. Silveira Jr. Em meio a uma paisagem tropical atravessada por espiritualidade, inteligência artificial e dilemas existenciais, o autor propõe uma provocação necessária: e se o futuro da humanidade estiver menos na tecnologia e mais na forma como nos conectamos com o que acreditamos — ou deixamos de acreditar?

Mais do que uma aventura cyberpunk, a obra costura realidades brasileiras com dilemas universais. A história acompanha Damiel Bastos, um jovem inquieto que vê sua vida virar de cabeça para baixo quando o pai, reverendo de uma comunidade local, é acusado de um crime. O que parecia ser apenas uma crise familiar se transforma numa jornada de descoberta — sobre o passado, o futuro e os muitos “eus” que cabem em uma só existência.

A seguir, David compartilha as raízes desse projeto que levou quase duas décadas para tomar forma e revela por que acredita que a imaginação pode ser a chave para reconstruir o nosso amanhã.

Entrevista

“A diferença entre colapso e transcendência talvez esteja na nossa capacidade de colaborar com quem pensa diferente.”

Seu livro cruza ciência, espiritualidade e mitologia — de onde veio o impulso para criar essas pontes?
Sempre me impressionou essa busca humana por sentido. Como tantos brasileiros, cresci em um ambiente de fé, mas em algum momento mergulhei também no universo da ciência, em busca de respostas mais tangíveis. Com o tempo, percebi que essas duas formas de conhecimento — fé e razão — respondem perguntas diferentes, mas não precisam ser inimigas.
O livro nasceu quando descobri o conceito de “mito do planeta”, do Joseph Campbell. A ideia de uma nova mitologia que acolhesse a complexidade do nosso tempo — com espiritualidade, inteligência artificial, dilemas morais, mudanças climáticas… — me instigou profundamente. Instinto de Eternidade é minha tentativa de unir essas dimensões: o encantamento do mito, a coragem da ciência e o poder da imaginação.

O protagonista Damiel tem algo de você?
Bastante. Damiel é a criança curiosa que eu fui e também o adulto que precisou desconstruir várias certezas. Ele representa o desconforto de quem cresceu dentro de um sistema de crenças muito rígido e, em algum momento, percebeu que não conseguia mais habitá-lo do mesmo jeito. Mas ao invés de rejeitar tudo, ele escolhe buscar novas formas de conexão.
Além disso, Damiel vive um conflito central do nosso tempo: como encontrar sentido em um mundo dominado por algoritmos, notícias instantâneas e inteligências artificiais? O que nos mantém humanos diante de tudo isso?

Sua trajetória pessoal, da religião à espiritualidade mais ampla, moldou a narrativa?
Com certeza. Tive uma vivência religiosa muito intensa, que foi verdadeira por um bom tempo. Mas também vivi um colapso espiritual — aquele momento em que nada mais parece fazer sentido. Essa travessia me deu um olhar mais empático, tanto com quem crê quanto com quem duvida.
Acredito que os mitos e as narrativas sagradas não precisam ser descartadas, mas sim reinterpretadas. Instinto de Eternidade é também uma tentativa de ressignificar esses símbolos, propondo uma nova leitura do sagrado à luz do nosso tempo.

Por que ambientar uma história de ficção científica no Brasil — e especificamente no Rio e em Belém?
Porque o Brasil é território fértil para o futuro, mesmo que a gente nem sempre perceba isso. Nossa cultura é feita de contradições — e é justamente aí que mora a potência. Quis mostrar um Rio que não é só cartão-postal, mas onde o cyberpunk já pulsa no cotidiano do subúrbio. Um Brasil onde fé e ceticismo andam lado a lado.
Belém, com o Círio de Nazaré, é um dos maiores símbolos dessa mistura. A maior procissão católica do mundo, cheia de sincretismo, emoção, corpo e fé. Era o cenário perfeito para um evento de grande impacto. Se o épico acontece em qualquer lugar, por que não aqui?

O projeto levou quase vinte anos para amadurecer. O que foi mais difícil nesse processo?
A parte mais desafiadora foi encontrar equilíbrio entre espiritualidade e racionalidade. Foram muitos rascunhos — alguns mais céticos, outros mais místicos. Demorei a entender que não precisava escolher um lado, que podia criar algo híbrido.
Também enfrentei o medo da exposição. Mesmo sendo uma ficção, o livro carrega perguntas muito íntimas. Queria que a história fosse honesta, e isso exigiu um mergulho pessoal profundo. Mas esse tempo de maturação foi essencial — tanto para a história quanto para mim como autor.

Que tipo de transformação você espera provocar nos leitores?
Gostaria que, ao final da leitura, o leitor se sentisse provocado a imaginar futuros mais amplos — e mais empáticos. Que questionasse suas certezas, reconhecesse sua vulnerabilidade, mas também seu poder criativo.
A ficção científica pode ser muito mais do que naves e distopias. Pode ser um laboratório de possibilidades, um espaço para experimentarmos ideias antes de aplicá-las no mundo real.
Se Instinto de Eternidade ajudar alguém a imaginar um futuro onde ciência, fé e arte coexistem com mais diálogo e menos guerra, já terá cumprido seu papel. E, quem sabe, inspirado outros a escreverem suas próprias utopias.

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