Foto: Agata Grzybowska/ FOCUS FEATURES LLC

Hamnet: A Vida Antes de Hamlet chega aos cinemas em 2025 como uma das adaptações literárias mais sensíveis dos últimos anos. Baseado no romance homônimo de Maggie O’Farrell, o longa dirigido por Chloé Zhao se distancia conscientemente do biográfico tradicional para construir um estudo íntimo sobre perda, amor e memória. Em vez de narrar feitos históricos ou glorificar o mito em torno de William Shakespeare, o filme escolhe observar o que permanece quando a tragédia já aconteceu e quando a ausência passa a reorganizar silenciosamente a vida dos que ficam.

A abordagem de Zhao é contida e profundamente humana. O luto, aqui, não se manifesta por grandes explosões emocionais ou discursos explicativos. Ele se instala nos gestos cotidianos, nos silêncios prolongados, na maneira como o tempo parece desacelerar após a perda de um filho. A morte de Hamnet não é tratada como um evento isolado, mas como uma força invisível que atravessa cada relação, cada espaço e cada escolha dos personagens.

No centro da narrativa estão Agnes e William Shakespeare, interpretados com notável sensibilidade por Jessie Buckley e Paul Mescal. O casal não representa apenas duas figuras históricas, mas duas formas radicalmente distintas de atravessar a dor. Agnes estabelece com a natureza uma relação de profunda intimidade. Seu vínculo com a terra, as plantas e os ciclos naturais carrega um misticismo orgânico que nunca soa artificial ou exótico. Trata se de uma espiritualidade silenciosa, construída a partir da escuta e da observação, que transforma o ambiente ao redor em extensão de seu mundo interior.

Jessie Buckley entrega uma das atuações mais marcantes de sua carreira. Sua Agnes carrega o luto no corpo, no olhar e até na respiração. Cada movimento parece atravessado por uma dor contida, nunca verbalizada em excesso. Buckley constrói uma personagem que comunica mais pelo silêncio do que pela palavra, transformando gestos mínimos em expressões de um sofrimento profundo e persistente. Sua presença em cena sustenta emocionalmente o filme e dá densidade a cada momento de recolhimento e resistência.

Paul Mescal, por sua vez, interpreta um William Shakespeare menos mítico e mais humano. Distante da imagem do gênio inspirado, seu personagem encontra na escrita uma tentativa de sobreviver à perda. A arte surge não como fuga, mas como um espaço de permanência. Ao escrever, William não busca apagar a ausência do filho, mas dar forma a ela. A criação artística se apresenta como um gesto de amor, um meio de manter viva uma presença que já não existe fisicamente.

Jacobi Jupe, no papel de Hamnet, oferece uma atuação delicada e luminosa. Sua presença em cena é breve, mas profundamente marcante. O jovem ator constrói um personagem que ocupa o filme com uma naturalidade comovente, como se desde o início anunciasse a falta que deixaria. Mesmo após sua saída da narrativa, Hamnet continua presente, não como lembrança explícita, mas como ausência constante que molda o comportamento e as emoções dos demais personagens.

A direção de fotografia desempenha um papel fundamental na construção da atmosfera do filme. A luz natural, os enquadramentos contemplativos e o ritmo paciente da câmera acompanham os estados emocionais dos personagens com precisão. Cada plano parece carregado de memória e de tempo, criando imagens que não explicam o sentimento, mas o experimentam junto ao espectador. A natureza não funciona apenas como cenário, mas como espelho emocional do que não pode ser dito.

Narrativamente, Hamnet: A Vida Antes de Hamlet opta por uma estrutura que privilegia a experiência sensorial em detrimento da linearidade clássica. O filme confia na capacidade do público de sentir e interpretar, sem recorrer a explicações excessivas. Essa escolha pode desafiar espectadores acostumados a narrativas mais diretas, mas é justamente nela que reside a força da obra. Zhao constrói um cinema que convida à contemplação e à escuta atenta.

Ao transformar a ausência em matéria artística, Chloé Zhao reafirma uma ideia essencial e poderosa. A arte não elimina a dor, mas pode torná la habitável. Em Hamnet: A Vida Antes de Hamlet, o cinema se apresenta como espaço de escuta, memória e permanência. Um filme que não busca consolar, mas compreender. E que, ao fazê lo, permite que o amor não desapareça, apenas encontre uma nova forma de existir.

Avaliação geral
Nota do crítico
Renato Almeida da Silva
Pernambucano, apaixonado por arte e cultura. Jornalista e especialista em História da Arte, dedica sua trajetória a investigar, narrar e valorizar expressões culturais que moldam identidades, memórias e movimentos sociais.
critica-hamnet-a-vida-antes-de-hamlet-e-um-retrato-delicado-e-profundo-do-luto-como-permanenciaHamnet: A Vida Antes de Hamlet é um drama sensível e contemplativo que acompanha William Shakespeare e sua esposa Agnes após a perda do filho Hamnet. Distante de uma abordagem biográfica convencional, o filme dirigido por Chloé Zhao investiga o luto como uma experiência silenciosa e permanente, refletida nos gestos, nos silêncios e na relação dos personagens com a natureza e a arte. Enquanto Agnes encontra na conexão com o mundo natural uma forma íntima de atravessar a dor, William transforma a ausência em criação literária, mostrando como o amor pode continuar existindo mesmo após a perda. Com atuações marcantes, especialmente de Jessie Buckley, e uma estética visual delicada, o filme propõe uma reflexão profunda sobre memória, ausência e permanência.

COMENTE

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui