“A Morte do Sr. Lazarescu” chega ao Reserva Imovision e mostra um retrato brutal da desumanização no sistema de saúde

0

Ele está sozinho. Seus gatos miam, a cabeça lateja, a náusea aumenta. Ele liga para a emergência e espera. Não há ninguém mais. Nenhum parente, nenhum amigo. Só a promessa de que alguém — qualquer um — venha socorrê-lo. Assim começa “A Morte do Sr. Lazarescu”, o filme romeno que, duas décadas após chocar plateias ao redor do mundo, finalmente chega ao streaming no Brasil pelo catálogo do Reserva Imovision. E se você ainda não assistiu, prepare-se: não é só um filme. É uma ferida aberta, exposta com precisão cirúrgica. E o mais desconcertante? Você já viu isso acontecer. Talvez mais de uma vez. Talvez com alguém que você conhecia. Talvez com você.

Dirigido por Cristi Puiu, o longa de 2005 é considerado um marco da chamada Nova Onda Romena, movimento cinematográfico que rompeu com os velhos moldes e decidiu filmar a vida como ela é — sem filtros, sem cortes suaves, sem trilha sonora redentora. Em “A Morte do Sr. Lazarescu”, a lente crua da câmera não quer te entreter, quer te obrigar a ficar. A olhar. A não desviar os olhos do que preferimos ignorar: a lenta, dolorosa e cotidiana desumanização de quem mais precisa.

O corpo que apodrece, o sistema que falha

Dante Remus Lăzărescu tem 63 anos. Mora em Bucareste, num apartamento pequeno, apertado, onde divide o espaço com três gatos e os restos de uma vida que já perdeu brilho. Quando começa a passar mal — dores de cabeça intensas, vômitos —, ele liga para a ambulância. Parece simples, como qualquer um faria. Mas o que se segue é tudo, menos simples. Lazarescu é colocado em uma maca e embarca em uma jornada absurda que parece saída de um pesadelo burocrático: de hospital em hospital, de médico em médico, sem que ninguém o acolha de fato.

É alcoolista, dizem uns. Está inventando, pensam outros. E enquanto seu corpo dá sinais claros de falência, os profissionais de saúde se perdem em julgamentos, protocolos, vaidades e distrações. O tempo passa. A dor cresce. A voz some. A morte se aproxima.

Assistir a esse filme é como entrar em um labirinto gelado de corredores hospitalares, onde tudo ecoa: a espera, a negligência, a solidão. Com planos longos e câmera trêmula, Puiu faz o tempo esticar como um elástico prestes a arrebentar. Não há cortes rápidos nem diálogos expositivos. Há silêncios. Muitos silêncios. E, nos espaços entre uma palavra e outra, a verdade grita.

O drama de um é o espelho de muitos

Ion Fiscuteanu, no papel de Lazarescu, não atua — ele se entrega. Seu corpo vai murchando em cena como um galho seco. A voz se apaga aos poucos. E nós, do outro lado da tela, sentimos a impotência de quem vê e não pode fazer nada. Ou pior: de quem assiste, mas costuma virar o rosto na vida real.

Porque todos nós já ouvimos histórias assim. Alguém que morreu esperando atendimento. Alguém que foi ignorado porque parecia bêbado. Alguém que foi diagnosticado tarde demais. A diferença é que, aqui, não é só uma manchete de jornal. É uma jornada íntima, demorada e incômoda. E esse desconforto é o que torna o filme tão necessário.

“A Morte do Sr. Lazarescu” não é sobre um homem apenas — é sobre todos nós. Sobre o que fazemos (ou não fazemos) quando a vida de alguém escapa diante dos nossos olhos, aos poucos, como se fosse aceitável. Sobre como normalizamos o abandono. Sobre como a frieza institucional se tornou rotina.

Quando a câmera se recusa a virar o rosto

É difícil não se perguntar: por que esse filme nos incomoda tanto? Porque não há fuga possível. A câmera insiste em permanecer. Fica ali, mesmo quando tudo em nós implora por um corte. Observa os olhos impacientes dos médicos, os gestos automáticos dos enfermeiros, as desculpas técnicas que escondem a falta de empatia.

Mas, mais do que criticar a medicina, o que o filme revela é algo mais profundo: uma falência ética coletiva. A de uma sociedade que mede o valor de uma vida por sua utilidade, pela sua higiene, pelo seu comportamento. A de pessoas que, na correria, se esquecem que o outro é alguém — alguém com nome, com história, com dor.

Uma morte que nos obriga a acordar

Quando o filme estreou no Festival de Cannes, em 2005, arrebatou a crítica e venceu o prestigiado Prêmio Un Certain Regard. Mas seu impacto não ficou apenas nos prêmios. Ele virou referência. Virou símbolo. Inspirou outros diretores romenos. Chegou a ser comparado a um “anti-drama hospitalar”, por retratar a medicina sem heroísmo, sem glamour, sem finais felizes.

E agora, quase vinte anos depois, sua estreia no catálogo do Reserva Imovision é uma chance rara de reviver essa experiência cinematográfica — ou de enfrentá-la pela primeira vez. Em um mundo saturado de conteúdos efêmeros, onde o próximo filme está a um clique de distância, “A Morte do Sr. Lazarescu” exige tempo, paciência e coragem. Porque é isso que a vida também exige.

Porque talvez Lazarescu seja você. Ou alguém que você ama.

O filme termina em silêncio. Não há trilha triste, nem música de créditos triunfal. Só silêncio. E é nesse silêncio que percebemos: a história não terminou ali. Ela continua, em cada sala de espera, em cada pronto-socorro lotado, em cada voz ignorada. Lazarescu pode ter sido um personagem, mas a sua morte é real — e acontece todos os dias, diante de olhos cansados demais para notar.

No fim, o filme não te pede lágrimas. Ele te pede presença. Te pede escuta. Te pede responsabilidade.

E talvez isso seja o mais próximo da arte verdadeira: aquela que, mesmo quando termina, continua nos mudando por dentro.

COMENTE

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui