
No domingo, 20 de julho de 2025, o Brasil vai dormir mais silencioso. O país perdeu uma de suas artistas mais espontâneas, combativas e amorosas: Preta Gil. A cantora, atriz, apresentadora e empresária faleceu aos 50 anos, em Nova York, após uma longa e corajosa batalha contra o câncer no intestino. A notícia foi confirmada por seu pai, Gilberto Gil, através de uma nota emocionada publicada nas redes sociais. A família agora se mobiliza para trazer o corpo de volta ao Brasil, onde será velada e homenageada com o afeto que ela sempre ofereceu ao mundo.
A despedida de Preta não é apenas o adeus a uma artista. É a perda de uma mulher que nunca teve medo de ser quem era. Uma figura que transformava vulnerabilidades em força, dor em arte, e escândalo em acolhimento. Uma voz que rompeu tabus, ampliou conversas e jamais se escondeu. O luto é nacional — e pessoal para milhares que se viam refletidos nela.
Uma guerreira diante da doença
Desde o diagnóstico de câncer no intestino em janeiro de 2023, Preta enfrentou a doença com uma transparência rara, mas sem perder a ternura. Compartilhou parte do tratamento nas redes sociais, entre sessões de quimioterapia e radioterapia, dividindo também momentos de introspecção e fé. Em agosto de 2024, passou por uma cirurgia delicada para remoção de tumores. O procedimento trouxe esperança, mas o câncer retornou, mais agressivo e em outras partes do corpo.
No início de 2025, Preta decidiu buscar um tratamento experimental nos Estados Unidos. Instalou-se em Nova York, onde ficou sob os cuidados de uma equipe especializada, realizando protocolos de terapia em Washington. Ela manteve o sigilo sobre os detalhes, mas sempre recebia manifestações de carinho, inclusive de fãs que organizavam orações e correntes de energia positiva. Foi uma luta digna, silenciosa e cercada de amor — como tudo o que ela fazia.

A voz que não queria pedir licença
Preta Maria Gadelha Gil Moreira nasceu no Rio de Janeiro em 8 de agosto de 1974. Filha de Gilberto Gil e da empresária Sandra Gadelha, já nasceu cercada de música, cultura e um nome que carregava cor e ancestralidade. Seu batismo gerou polêmica no cartório: o funcionário se recusou a registrar apenas “Preta”, obrigando os pais a adicionarem o “Maria”. Gil transformou o episódio em canção e bandeira. A filha, mais tarde, faria o mesmo com sua própria trajetória.
Demorou a se lançar profissionalmente na música. Seu primeiro álbum, Prêt-à-Porter, foi lançado em 2003, quando ela já tinha quase 30 anos. A capa do disco, com Preta nua, causou frisson na imprensa. Mais do que sensualidade, era um grito de independência — uma mulher fora dos padrões estéticos impostos pela indústria mostrando o corpo com orgulho. Mas o conservadorismo reagiu mal. “Me chamavam para entrevistas mais por causa do meu corpo do que da minha voz”, disse ela, anos depois, à Forbes Brasil.
Apesar das críticas e reduções, Preta seguiu em frente. Ampliou sua atuação como atriz — esteve no elenco da novela Agora É Que São Elas — e também como apresentadora. Em Caixa Preta, na Band, abriu espaço para debates sobre identidade, sexualidade, autoestima e representatividade.
No teatro, brilhou em 2006 com o espetáculo Um Homem Chamado Lee, em que interpretava uma travesti apaixonada por Rita Lee. Era provocação e afeto ao mesmo tempo. Música, performance, humor e denúncia. A síntese perfeita de tudo o que ela acreditava.
Uma artista que se fazia plural
Seu segundo álbum, Preta (2005), seguiu mostrando sua versatilidade. Mas foi com a turnê Noite Preta, em 2008, que ela fincou os pés no pop nacional. Os shows, sempre lotados, misturavam axé, funk, samba, tecnobrega e covers improváveis, como “Like a Virgin”, de Madonna. Ela subia ao palco de collant, salto e brilho, afirmando com o corpo e a música que ser quem se é pode — e deve — ser celebrado.
O DVD da turnê, gravado em 2009 no The Week Rio, é considerado um marco. Era o retrato de uma artista madura, com público cativo e muito mais a dizer do que se ouvia nas rádios.
Rainha do Carnaval e do amor livre
Se havia um lugar onde Preta Gil reinava absoluta, esse lugar era o Carnaval. O Bloco da Preta, criado por ela em 2009, virou um dos maiores do Rio de Janeiro. Em seus desfiles, a rua era tomada por diversidade, afeto, brilho e liberdade. Milhões de pessoas foram às ruas para dançar, cantar e se libertar ao som de sua voz.
Em 2013, o DVD comemorativo de 10 anos de carreira trouxe participações especiais de artistas como Ivete Sangalo, Anitta, Lulu Santos e Thiaguinho. Era um tributo à sua trajetória — e também um reflexo do quanto era querida por seus pares.
Preta sempre defendeu o direito de amar sem rótulos. Falava abertamente sobre sua bissexualidade e, mais tarde, pansexualidade. Era uma das poucas figuras públicas que abordavam essas questões sem medo, com empatia e escuta. Tornou-se porta-voz informal da comunidade LGBTQIA+, abrindo caminhos com palavras e ações.
Intensidade no palco e na vida
Na vida pessoal, Preta foi generosa e intensa. Casou-se três vezes, sendo mãe de Francisco — nascido em 1995, fruto do relacionamento com o ator Otávio Müller. Depois, viveu casamentos com Carlos Henrique Lima e Rodrigo Godoy. Em 2015, ganhou sua neta, Sol de Maria, e mergulhou em uma nova fase: a de avó moderna, divertida e amorosa.
Teve relacionamentos com Caio Blat, Paulo Vilhena, Marcos Mion — mas nunca permitiu que sua vida íntima se tornasse espetáculo. Sabia proteger seus afetos, sem abrir mão da verdade. Era amiga fiel, conselheira firme, e presença constante nas festas e nas dores de quem amava.
Muito além do microfone: a empresária visionária
Nos últimos anos, Preta também se destacou como uma figura de bastidor. Fundadora da Music2Mynd, empresa de agenciamento artístico e marketing de influência, ela foi mentora e ponte para uma nova geração de artistas.
Ajudou a construir carreiras, lapidar talentos e transformar digital em presença real. Sabia ler o momento cultural como poucas, e entendia que autenticidade era o diferencial. Acreditava em narrativas com propósito — e é isso que fazia brilhar seu trabalho com influenciadores, músicos e comunicadores.
Uma despedida que ecoa em milhões de corações
Com a confirmação da morte, o Brasil se cobriu de homenagens. Figuras como Ivete Sangalo, Caetano Veloso, Pabllo Vittar, Anitta, Gilberto Gil e fãs anônimos usaram as redes para agradecer a Preta pela coragem, generosidade e arte. A comoção não é apenas pela ausência, mas pelo reconhecimento da grandeza de alguém que transformou sua existência em farol para os outros.
O Ministério da Cultura emitiu nota oficial exaltando sua contribuição à cultura brasileira. Nas ruas do Rio, o Bloco da Preta deve se transformar em cortejo-homenagem em 2026. A despedida será pública, como sempre foi sua entrega: coletiva, vibrante, emocionada.
Preta para sempre: uma mulher que não cabia em moldes
Preta Gil não era só filha de Gilberto. Não era só a cantora do bloco. Nem só a empresária por trás das câmeras. Ela era tudo isso — e muito mais. Uma mulher que viveu de peito aberto, com erros e acertos, com dores e conquistas, com arte e afeto.
Seu legado é um convite: a viver sem pedir desculpas. A amar sem rótulo. A ocupar o espaço com o corpo que se tem. A transformar traumas em potência. A rir alto. A chorar junto. A dançar até o fim.
Na sua última entrevista antes de viajar para os EUA, ela deixou uma frase que hoje soa como testamento: “Se eu for embora amanhã, que saibam que eu fui muito amada. E que amei também. Muito. Com tudo que eu tinha.”
Você foi, Preta. Você é. E sempre será.
Obrigado, Preta Gil, por tudo que foi — e por tudo que nos ensinou a ser.
















