
Bugonia (2024), remake do cult coreano Save the Green Planet! (2003), alcança um equilíbrio raro entre terror psicológico, sátira social, humor corrosivo e drama profundamente humano. A premissa é aparentemente absurda: dois homens sequestram uma mulher por acreditarem que ela é uma alienígena disfarçada e pronta para destruir o planeta. Mas a força do filme não está no delírio conspiratório em si — e sim na forma como ele revela, camada por camada, os mecanismos de um sistema que reduz pessoas a funções, utilidades ou obstáculos. No limite, Bugonia expõe um mundo que não enlouquece apenas os indivíduos, mas também os molda, os sufoca e os descarta.
Sob o comando de Yorgos Lanthimos, tudo ganha textura de desconforto. O diretor escolhe o estranhamento como linguagem, apostando em enquadramentos que comprimem, luzes que intimidam e uma estética que vibra entre o grotesco e o cômico. Emma Stone entrega uma performance visceral, alternando vulnerabilidade, humor nervoso, pavor e uma fisicalidade quase animal. Há uma potência particular em observar a atriz navegar entre o terror e a ironia, revelando aos poucos a complexidade emocional por trás da personagem.
Jesse Plemons, por sua vez, oferece uma de suas interpretações mais intensas. Seu personagem é movido não apenas por teorias conspiratórias, mas por uma dor crua — decorrente do modo como foi triturado por um sistema que transforma vidas em índices, funções e mercadorias. O fanatismo que o domina nasce de uma fratura emocional que o filme nunca trata com simplismo: ele é simultaneamente vítima e agente de uma violência que ultrapassa o âmbito pessoal.
A principal força de Bugonia reside na crítica às engrenagens do capitalismo contemporâneo, com destaque para o poder descomunal das indústrias farmacêuticas. Elas moldam sintomas, discursos e percepções, transformando a saúde em produto e o sofrimento em estratégia de mercado. Lanthimos articula essa crítica com brutalidade estética: golpes, gritos, delírios, manipulação midiática, tudo embalado em um clima claustrofóbico que denuncia como a violência se infiltra nas microestruturas do cotidiano. Em um mundo onde vidas valem pelo que produzem, a crueldade é sistematizada, naturalizada e, muitas vezes, invisibilizada.
A simbologia das abelhas funciona como eixo metafórico poderoso. Pequenos organismos responsáveis por sustentar ecossistemas inteiros são submetidos à mesma lógica utilitarista que recai sobre seres humanos — valem enquanto servem. Lanthimos usa essa metáfora para ampliar sua crítica: o colapso não é repentino; ele é acumulado, silencioso, gradual. O desaparecimento das abelhas ecoa o desaparecimento de indivíduos engolidos por estruturas que não reconhecem singularidades.
Um final provocador e inquietante por outros motivos
Bugonia mantém seu impacto até os momentos finais, mas sua conclusão deixa espaço para leituras ambíguas — e, de certa forma, problemáticas. Assim como Batem à Porta (M. Night Shyamalan), o filme corre o risco de reforçar as mesmas lógicas que critica, ao sugerir que tudo pode ser reduzido a missões, propósitos ou narrativas utilitárias. O desfecho, embora provocador, suaviza o golpe que o filme vinha construindo e perde a oportunidade de apertar ainda mais o cerco sobre os sistemas que desumanizam.
Ainda assim, o conjunto permanece impressionante. Bugonia é um filme que fere, provoca, ri do absurdo e expõe o horror do funcionalismo extremo que estrutura nossas vidas. O terror que ele apresenta não é extraterrestre — é profundamente humano e, pior, profundamente cotidiano.





