A adaptação de O Filho de Mil Homens é um projeto ambicioso que, no entanto, revela irregularidades que comprometem sua força dramatúrgica. O roteiro hesita em assumir plenamente o peso emocional do romance de Valter Hugo Mãe; dispersa energia em desvios, alonga conflitos sem necessidade e, por vezes, sacrifica densidade em troca de contemplação vazia. Ainda assim, o filme encontra potência quando decide encarar de frente aquilo que tem de mais genuíno: as feridas abertas de seus personagens.

A solidão como espinha dorsal do filme

Rodrigo Santoro interpreta Crisóstomo com sobriedade, mas sua performance raramente alcança a complexidade anunciada pela campanha de divulgação. Falta à construção do personagem um mergulho mais visceral em sua angústia, em sua carência quase infantil de pertencer a uma família. Em contraponto, Miguel Martines (Camilo) entrega uma atuação de grande sensibilidade, traduzindo fragilidade sem perder presença. Rebeca Jamir, como Isaura, carrega no corpo as marcas de humilhação, violência e resistência; sua atuação se sobressai justamente por não pedir piedade, mas por expor dignidade ferida. Johnny Massaro compõe Antonino como um espelho doloroso do pavor de existir em um mundo que pune quem escapa da norma — e talvez seja ele quem mais deixa marcas.

Juliana Caldas amplia o espectro emocional do longa. Sua personagem vive uma solidão que não é vazio, mas resultado direto das exclusões sociais e da crueldade que se abatem sobre corpos dissidentes. Ela adiciona uma camada de sensibilidade e verdade que o filme nem sempre consegue sustentar em outras frentes.

A solidão, portanto, não surge como um estado contemplativo, mas como um produto estrutural de abandono, rejeição e traumas que atravessam todos esses personagens.

O desejo de pertencer, mesmo quando dói

O filme ganha fôlego justamente quando aborda o impulso — sempre fraturado — de criar laços. Crisóstomo se agarra ao papel simbólico de pai na tentativa de justificar sua própria existência. Camilo anseia por um afeto que o reconheça para além da carência. Isaura procura um espaço onde sua dignidade não seja continuamente violada. Antonino luta para pertencer primeiro a si mesmo, antes que o mundo o reduza a estereótipos.

O pertencimento, aqui, é sempre inacabado, sempre doloroso. É um gesto de procura que retorna como frustração.

Entre revelar-se e esconder-se

A identidade é tratada como um território instável, moldado por vergonha, desejo, culpa e coragem. O filme encontra grande força nessa tensão: o medo de existir por inteiro se mistura com uma urgência desesperada de ser visto. Essa dualidade, presente em todos os personagens, poderia ser ainda mais explorada, mas funciona como um dos motores mais consistentes da narrativa.

Homofobia, violência sexual e imposições sociais

A obra não se furta a temas contundentes — homofobia, violência sexual, abuso psicológico, intolerância religiosa — que atravessam e moldam as trajetórias dos personagens. Ainda que nem sempre aprofundados como poderiam, esses elementos são apresentados com firmeza suficiente para expor o modo como a sociedade cria e perpetua suas violências. O filme mostra, mais do que discute, como essas marcas se transformam em silêncios e cicatrizes permanentes.

O que permanece?

Permanece a dor, permanece a imagem de personagens que continuam ressoando muito depois do fim da projeção. Permanece também a sensação de que, apesar das irregularidades narrativas e estéticas, o filme captura algo essencial: a tentativa de sobreviver emocionalmente em um mundo onde o afeto é escasso e a hostilidade é regra.

Filho de Mil Homens não atinge todo o alcance que promete, mas, quando acerta, acerta no ponto mais sensível — o lugar onde a vulnerabilidade humana revela sua força mais profunda.

Avaliação geral
Nota do crítico
Renato Almeida da Silva
Pernambucano, apaixonado por arte e cultura. Jornalista e especialista em História da Arte, dedica sua trajetória a investigar, narrar e valorizar expressões culturais que moldam identidades, memórias e movimentos sociais.
critica-filho-de-mil-homens-constroi-um-mosaico-de-solidao-e-identidades-em-conflitoFilho de Mil Homens é uma adaptação ambiciosa que não alcança toda a força emocional do livro de Valter Hugo Mãe. O roteiro se mostra irregular e hesitante, deixando a narrativa dispersa e menos impactante do que poderia ser. Apesar disso, o filme encontra potência quando mergulha nos dilemas íntimos de seus personagens — todos atravessados por solidão, desejo de pertencimento e identidades em conflito. As atuações de Miguel Martines, Rebeca Jamir, Johnny Massaro e Juliana Caldas se destacam pela sensibilidade e profundidade, enquanto Rodrigo Santoro oferece uma performance mais contida do que o papel sugere. A obra aborda temas duros como homofobia, violência sexual e imposições sociais, ainda que nem sempre com o aprofundamento necessário. No conjunto, é um filme irregular, porém emocionalmente honesto, que permanece na mente pelo impacto de suas dores e pela busca fraturada de afeto.

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