
Kleber Mendonça Filho consolida sua posição como um dos cineastas mais audaciosos do Brasil contemporâneo em O Agente Secreto, apresentado na Competição Oficial deste ano. Ao contrário de diretores que dialogam com gêneros cinematográficos clássicos de maneira convidativa, como Paul Thomas Anderson ou Richard Linklater, Mendonça adota um caminho mais instigante: suas referências não existem para confortar o público, mas para desestabilizá-lo, provocar reflexão e despertar curiosidade. O cineasta cria um cinema de intensidade calculada, em que cada elemento — da narrativa à ambientação — participa de uma teia de significados que desafiam a percepção imediata do espectador.
O longa se passa em Recife, cidade já simbólica na filmografia de Mendonça Filho, aqui recriada em 1977, um período marcado por tensões políticas e sociais no Brasil. No centro da narrativa está um ex-acadêmico em conflito com o governo, inicialmente apresentado como Marcelo e depois revelado como Armando. Essa ambiguidade nomeia o tom da obra: um filme que se recusa a ser facilmente categorizado, que opera em um espaço de incertezas, misturando memória, política e cinema de gênero. O próprio enredo, estruturado quase como um mosaico, recusa linearidade: cada personagem, evento e detalhe histórico atua como fragmento de uma realidade maior, conduzindo o espectador por camadas de significado que exigem atenção e reflexão.
Com uma duração próxima de duas horas e quarenta minutos, O Agente Secreto apresenta um universo densamente povoado, entrelaçando narrativas secundárias que, à primeira vista, parecem dispersas, mas que se articulam para criar uma representação vívida de uma época. Mendonça Filho demonstra maestria em integrar elementos de cenário, como o carnaval, a imprensa local e referências cinematográficas da década de 1970, sem reduzi-los a meros indicadores temporais. Pelo contrário, cada detalhe contribui para a construção de uma textura narrativa própria, rica e polifônica.
O filme se distingue também pela inserção inesperada do presente na narrativa, promovendo uma reflexão sobre memória política e social. Essa estratégia, que já aproxima o longa de obras como Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, vai além da comparação: enquanto Salles oferece compreensão e contextualização, Mendonça Filho provoca desconforto e frustração, recusando o prazer didático do cinema baseado em fatos reais. O espectador é constantemente desafiado a decifrar nuances, subtextos e ambiguidades, tornando a experiência cinematográfica ativa e exigente.
Sequências como a perseguição de Armando por assassinos de aluguel ilustram o domínio do diretor sobre a tensão narrativa. Ao subverter expectativas — desviando o clímax e negando a catarse tradicional do thriller — Mendonça reafirma seu compromisso com um cinema politicamente engajado e formalmente inventivo. Essa recusa deliberada ao conforto emocional e narrativo não é apenas um recurso estilístico, mas um posicionamento crítico que atravessa toda a obra.
Além disso, o diretor manipula habilmente os códigos do cinema de gênero. O que poderia se tornar uma narrativa linear e previsível, adequada a formatos de streaming convencionais, é transformado em um cinema de subversão e complexidade. Cada desvio, cada pausa, cada corte inesperado funciona como um recurso expressivo, ampliando camadas de significado e mantendo o filme vivo na memória do espectador muito depois da exibição.
O Agente Secreto é um cinema de tensão e reflexão, que se recusa a ser facilmente consumido. Desafiador e repleto de arestas, o filme convida o público a perder-se para, paradoxalmente, encontrar uma representação profunda de uma época e um espelho crítico do presente. Mendonça Filho reafirma sua singularidade, articulando memória, política e cinefilia em um longa que confirma seu lugar como um dos autores mais originais e relevantes do cinema brasileiro contemporâneo.
















