
Em uma São Paulo que ainda respirava os ares coloniais, marcada por carruagens, vestidos longos, salões iluminados à vela e conversas sussurradas entre leques, um amor improvável floresceu. Entre paredes aristocráticas, convenções religiosas e expectativas que esmagavam o que era diferente, duas mulheres ousaram se olhar de outro jeito. E esse olhar, tão simples e ao mesmo tempo tão revolucionário, mudou tudo.
Foi isso que Vanessa Airallis contou em “Não somos melhores amigas”, o romance sáfico de época que arrebatou centenas de leitoras brasileiras nos últimos anos. Agora, com o lançamento de “Enfim, esposas”, a autora entrega não apenas uma continuação, mas um mergulho ainda mais intenso nos dilemas, escolhas e sentimentos de Alice Bell Air e Isis d’Ávila Almeida, duas personagens que vivem aquilo que, para muitas mulheres da época — e ainda hoje —, parecia inalcançável: um amor possível entre duas mulheres.
Uma carta de amor às que vieram antes
Ao escrever sobre o fim do século XIX, Vanessa não está apenas contando uma história de amor. Ela está escrevendo uma carta. Uma homenagem. Um registro silencioso, mas poderoso, daquilo que tantas mulheres viveram em segredo, muitas vezes sem nomear, sem poder contar, sem poder viver.
“Enfim, esposas” começa com Alice de volta a São Paulo após uma temporada no exterior. Mas ela retorna diferente. O corpo, a mente, o coração — tudo nela mudou desde que se permitiu sentir algo por Isis. Algo que ela mal consegue entender, mas que reconhece como verdadeiro. Como real. Ainda que sua família, extremamente religiosa, a pressione a se casar com um bom pretendente, ela já sabe que nenhum homem poderá provocar nela o que Isis provoca com um simples toque de olhar.
Isis, por sua vez, continua vivendo o drama silencioso de uma mulher presa em um casamento tradicional. Rica, bela e respeitada, ela parece ter tudo o que uma dama da elite paulistana poderia desejar — exceto liberdade para amar. A chegada de Alice reacende nela sentimentos que ela tentou sufocar, mas que nunca morreram de fato.
Um romance sobre escolhas que moldam destinos
O que torna a escrita de Vanessa Airallis tão especial é justamente sua habilidade de transformar o silêncio em palavra, a opressão em poesia, o toque negado em narrativa. Alice e Isis não estão apenas apaixonadas — elas estão lutando contra tudo o que aprenderam a ser. Estão se permitindo desejar num tempo em que o desejo feminino era visto com desconfiança. E mais ainda: estão lutando para viver um amor que não tinha nome, nem espaço, nem modelo. Se “Não somos melhores amigas” foi o nascimento desse amor, “Enfim, esposas” é o confronto com o mundo. O momento em que o que elas sentem precisa ser escolhido — ou abandonado. E nesse embate, Vanessa não oferece soluções fáceis. Suas personagens são humanas, falham, têm medo, se escondem. Mas também são valentes, ternas, leais ao que sentem — mesmo quando o mundo insiste em dizer que estão erradas.
A delicadeza de contar histórias que o tempo tentou apagar
É impossível falar de “Enfim, esposas” sem destacar o cuidado que a autora tem com os detalhes. Desde os trajes e costumes da elite paulista do século XIX até os modos de falar, os rituais sociais e a repressão velada que atravessava o cotidiano das mulheres, tudo é tratado com precisão e lirismo. Mas o que realmente brilha é o sentimento. A maneira como Vanessa escreve o amor. Não um amor idealizado, imune aos conflitos ou aos muros sociais. Mas um amor cheio de camadas, com desejo e ternura, silêncio e culpa, raiva e encantamento. A cada página, a autora parece sussurrar ao ouvido da leitora: “Sim, vocês existiram. Sim, vocês também amaram. Sim, suas histórias importam.” E talvez essa seja a principal força do livro — oferecer um espelho para quem, durante muito tempo, não pôde se ver.
Um passo importante na representatividade lésbica na literatura brasileira
Ainda é raro encontrar romances de época protagonizados por duas mulheres nos catálogos das grandes editoras brasileiras. E mais raro ainda quando essas histórias são ambientadas no Brasil, com nossa cultura, nossos conflitos e nossa história. Com o apoio da Verus Editora, “Enfim, esposas” chega como um gesto importante de representatividade. Não apenas por retratar o amor sáfico com respeito e profundidade, mas por resgatar um passado que foi vivido por muitas — mas contado por poucas. Vanessa constrói com firmeza uma ponte entre o presente e o passado. Seu livro fala com quem vive hoje, mas também com as tantas mulheres que não puderam viver o que sentiam. E isso é, por si só, um gesto político, poético e necessário.
O que esperar da leitura?
Leitoras que se encantaram com o primeiro livro vão encontrar em “Enfim, esposas” uma história ainda mais emocionalmente carregada. É um livro sobre escolhas difíceis, sobre segredos, sobre esperança. E, acima de tudo, sobre o que acontece quando duas mulheres descobrem que não dá mais para fugir do que sentem. A escrita da autora é elegante, envolvente, às vezes sensual, às vezes dolorida. Ela sabe dosar emoção sem cair na dramatização gratuita. E, como poucas autoras brasileiras contemporâneas, consegue construir um romance sáfico que é doce e político ao mesmo tempo.
















