
Poucas histórias brasileiras conseguiram atravessar o tempo com tanta delicadeza quanto Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. O longa, lançado em 2014, marcou jovens e adultos com sua abordagem sensível sobre amadurecimento, amizade, amor e descoberta da própria identidade. Agora, mais de uma década depois, a narrativa renasce em um novo formato: uma versão em quadrinhos que será publicada pela Editora Seguinte em maio de 2026. A adaptação reúne o diretor e roteirista Daniel Ribeiro, autor do texto original, e o ilustrador Bruno Freire, que assume a missão de traduzir para imagens uma história que vive até hoje no imaginário de milhares de fãs.
A notícia do lançamento mexeu com a memória afetiva de muita gente que viu o filme ainda adolescente e hoje, mais velha, reconhece o quanto a obra ajudou a abrir portas para conversas sobre diversidade, acessibilidade e afetos juvenis. Há algo profundamente simbólico no fato de a história retornar pelas mãos de seu próprio criador: é como se Daniel Ribeiro revisitasse uma parte importante de sua trajetória artística e emocional, agora com o desafio de recriar Leo, Gabriel e Giovana para uma nova geração.
O reencontro com Leo, um personagem que nunca deixou de existir no coração do público
Uma das razões pelas quais Hoje Eu Quero Voltar Sozinho se tornou tão especial está na humanidade de Leo. Ele é um adolescente cego que deseja as mesmas coisas que qualquer jovem: autonomia, liberdade, pequenas aventuras e, claro, a chance de viver o primeiro amor. Mas a grande força da narrativa sempre foi o fato de que Leo não é definido por sua deficiência. Ele é curioso, às vezes inseguro, um pouco tímido, teimoso e cheio de sonhos. Seu mundo é feito de sensações, sons, amizades verdadeiras e medos comuns a qualquer pessoa que está tentando encontrar seu lugar no mundo.
Na versão em quadrinhos, essa sensibilidade ganha contornos novos. Bruno Freire ilustra a história com um olhar que não tenta substituir o cinema, mas sim expandi-lo. As páginas prometem mostrar o cotidiano de Leo com delicadeza, priorizando o gestual dos personagens, a atmosfera das ruas, a forma como a luz atravessa os momentos e a textura emocional de cada cena. Há algo de profundamente íntimo no ritmo dos quadrinhos: o leitor percorre cada quadro no seu tempo, guarda detalhes, revisita páginas e vive pequenas pausas que ampliam o significado da narrativa.
Uma história que continua necessária, dez anos depois
O filme de Daniel Ribeiro foi um marco, não apenas para o cinema brasileiro, mas para a representação LGBTQIA+ na juventude. Na época, poucas produções tratavam o amor entre dois garotos com tanta autenticidade, sem espetacularizar o conflito nem transformar o romance em uma tragédia. Hoje Eu Quero Voltar Sozinho fala sobre amor com inocência, poesia e verdade — e esse tipo de representação sempre foi escassa.
A decisão de trazer a obra para o universo dos quadrinhos reforça a importância de continuidade dessa discussão. Em um mercado editorial que tem aberto cada vez mais espaço para histórias com protagonistas diversos, a HQ chega como um gesto de carinho e também como um convite: é hora de relembrar o que nos tocou lá atrás, mas também é tempo de apresentar a história a quem não viveu aquele lançamento em 2014.
Em um período em que redes sociais moldam comportamentos, em que jovens convivem com medos e expectativas diferentes das gerações anteriores, a história de Leo, Gabriel e Giovana permanece atual. Ela fala sobre coragem de se descobrir, sobre o medo de não ser aceito e sobre o valor de ser visto por quem realmente importa — e isso é universal.
A força dos quadrinhos na reinvenção da narrativa
Transformar um filme tão sensorial em quadrinhos é um desafio artístico e emocional. Mas é exatamente aqui que a união entre Daniel Ribeiro e Bruno Freire se torna especial. O diretor conhece intimamente cada detalhe da história, enquanto o ilustrador acrescenta um olhar contemporâneo, mais próximo da linguagem visual consumida pelos jovens de hoje.
Os primeiros materiais divulgados mostram um trabalho cuidadoso, com personagens expressivos, paleta acolhedora e cenas que misturam simplicidade e profundidade. A HQ não pretende apenas adaptar, mas ressignificar. Como se Leo, dessa vez, estivesse contando sua história com outras palavras, outros gestos, outras cores — mas com o mesmo coração.
O formato permite ainda brincar com a subjetividade. Passagens que no filme são rápidas, como toques, silêncios e risadas contidas, podem ganhar páginas inteiras. A relação entre Leo e Gabriel pode ser vista com mais calma, mais detalhes, mais intimidade. A amizade com Giovana também encontra mais espaço para revelar nuances que talvez no longa tenham ficado apenas sugeridas.
Há, portanto, uma chance real de esta HQ ampliar o que o filme começou.
Uma sinopse que toca fundo sem precisar exagerar
A nova edição acompanha as férias de Leo, que parecem iguais a todas as outras: ele divide o tempo entre a piscina da vizinhança e conversas com Giovana, que vive acreditando que algo grandioso vai acontecer a qualquer momento. Leo, por sua vez, sonha com a ideia de fazer um intercâmbio, mas duvida que seja possível viajar sozinho, considerando o excesso de proteção da mãe e as dificuldades que enfrenta para conquistar autonomia.
A volta às aulas traz antigos problemas — o bullying dos colegas, o incômodo de ser visto apenas como “o menino cego”, a pressão da família — mas também traz Gabriel, o novo aluno, dono de um sorriso tranquilo e de uma curiosidade sincera. A aproximação entre os dois surge de forma espontânea. São conversas no caminho da escola, tardes compartilhadas e pequenas revelações que fazem Leo perceber um sentimento que nunca tinha experimentado antes.
É nesse percurso que a história encontra seu tom mais doce: a sensação de descobrir o mundo através do afeto, de ser reconhecido para além das expectativas e limitações que os outros projetam.
O legado do filme
Embora Hoje Eu Quero Voltar Sozinho tenha conquistado diversos prêmios internacionais, incluindo o FIPRESCI no Festival de Berlim, e tenha sido o escolhido para representar o Brasil na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, seu impacto vai além dos troféus. O que realmente permaneceu foi o carinho do público, os relatos de jovens que se viram pela primeira vez numa narrativa assim, o afeto que a obra despertou em pessoas que precisavam daquela história para entender a si mesmas.
O filme ocupou um espaço que até então estava vazio. E por isso ele não parou no tempo: circula em escolas, clubes de leitura, cineclubes universitários, grupos LGBTQIA+, salas de aula e até hoje é recomendado como referência nas discussões sobre inclusão.
A chegada da HQ reforça essa permanência.





