
Em um verão escaldante na costa espanhola, o calor não queima apenas a pele — ele incendeia ressentimentos, segredos e os laços frágeis entre mãe e filha. Assim se desenrola Hot Milk, o delicado e perturbador longa-metragem que marca a estreia na direção da premiada roteirista britânica Rebecca Lenkiewicz, responsável por roteiros de filmes como She Said, Ida e Desobediência. O filme estreia com exclusividade na plataforma MUBI no dia 22 de agosto de 2025, prometendo uma experiência sensorial e emocional intensa.
Baseado no romance homônimo de Deborah Levy, indicado ao Booker Prize em 2016, Hot Milk estreia cercado de expectativas e debate. A produção teve sua première mundial na Competição Oficial do 75º Festival de Cinema de Berlim, onde concorreu ao Urso de Ouro e dividiu a crítica com sua proposta contemplativa e provocadora.
Entre cuidado e cárcere: a relação que prende
No centro do filme está Sofia, vivida por Emma Mackey (Sex Education, Emily, Barbie), uma jovem que passou a vida à sombra da mãe, Rose (Fiona Shaw, de Killing Eve). A viagem de ambas à cidade de Almería, no sul da Espanha, em busca de um tratamento para uma doença crônica e misteriosa de Rose, serve como ponto de partida para uma jornada emocional mais profunda: a libertação de Sofia da prisão emocional em que foi colocada desde a infância.
A princípio, a trama parece girar em torno da busca pela cura física. Mas, aos poucos, o roteiro conduz o espectador para a verdadeira enfermidade — não a do corpo, mas a da alma. Hot Milk é, em essência, sobre um vínculo adoecido, onde o cuidado se transforma em poder, e o amor em manipulação. Rebecca Lenkiewicz, em entrevistas, resumiu: “Há algo venenoso em algumas formas de amor”.

A chegada de Ingrid e a promessa de liberdade
É nesse contexto que surge Ingrid (vivida com charme etéreo por Vicky Krieps), uma mulher livre, misteriosa, que personifica tudo o que Sofia nunca conheceu: desejo, autonomia, instinto. A relação entre as duas é construída mais pelos gestos e olhares do que pelas palavras, criando uma atmosfera carregada de tensão sensual e descoberta emocional.
Ingrid não é apenas uma figura de interesse romântico — ela é um símbolo. Representa o outro lado do espelho: uma vida que Sofia poderia ter tido se não estivesse sempre em função da dor e da vontade da mãe. A relação entre elas, marcada por delicadeza e fricção, amplia o espectro do filme para além da maternidade, abordando também os labirintos do desejo feminino, da autonomia corporal e do direito de se reinventar.
Uma estética sensorial e inquietante
Filmado durante o verão europeu de 2023, entre Espanha e Grécia, o longa transforma o clima em personagem. O sol é opressor. A areia parece grudar na pele das protagonistas. O som das ondas, o barulho do vento, o zumbido do calor — tudo é usado pela direção para criar uma sensação de claustrofobia emocional. A fotografia, assinada com tons quentes e granulados, amplia esse sufocamento.
Lenkiewicz evita os atalhos do melodrama e investe em uma narrativa contemplativa, que valoriza os silêncios, os gestos contidos, e os conflitos não ditos. A influência do cinema de Ingmar Bergman é evidente na maneira como o filme investiga os vínculos familiares com desconforto, respeito e brutalidade.
Atuação que pulsa nas entrelinhas
A força de Hot Milk reside também nas interpretações. Emma Mackey entrega uma atuação sutil, marcada por expressões silenciosas e olhares de tensão. Sua Sofia começa como uma figura quase apagada, contida, mas ao longo da trama, ganha densidade, desejo, raiva — num arco de crescimento doloroso e libertador.
Fiona Shaw, por outro lado, apresenta Rose como uma figura ambígua: manipuladora, vulnerável, egocêntrica e, ainda assim, capaz de despertar empatia. É impossível ignorar sua presença em cena. Ela domina o espaço como alguém que se habituou a ser o centro da atenção — mesmo que isso custe a liberdade da filha.
A química entre ambas é palpável. Cada cena carrega uma tensão emocional quase sufocante, refletindo uma realidade muitas vezes silenciosa: a do amor materno que, sem limites, transforma-se em cárcere.
Da literatura ao cinema: bastidores e desafios
A adaptação do romance de Deborah Levy foi um processo demorado e cheio de exigências. Quando Christine Langan, da Baby Cow Productions, adquiriu os direitos do livro, sabia que queria alguém com sensibilidade para lidar com o material. Lenkiewicz topou a tarefa com uma condição: também queria dirigir o filme.
O orçamento de £4 milhões foi viabilizado com uma combinação de incentivos fiscais do Reino Unido e da Grécia, além de pré-vendas internacionais e o apoio da Film4. Segundo o produtor Giorgos Karnavas, filmar no auge do verão foi um desafio. Havia alertas de calor extremo, dificuldades logísticas e a tensão de manter a saúde da equipe em meio às altas temperaturas. Mas Lenkiewicz insistiu: queria o sol como metáfora, como elemento narrativo.
Após a estreia em Berlim em fevereiro de 2025, o filme passou por festivais europeus e norte-americanos, sempre provocando reações intensas. Agora, chega à MUBI, onde encontra um público mais íntimo, voltado ao cinema autoral e à introspecção estética.
Recepção dividida, mas reflexiva
A crítica não foi unânime. No Rotten Tomatoes, apenas 37% das críticas foram positivas, enquanto no Metacritic, a nota foi 54/100. Críticos elogiaram as atuações de Mackey e Shaw e a abordagem estética da diretora, mas apontaram o ritmo lento e a ambiguidade narrativa como elementos que podem afastar parte do público.
Por outro lado, o filme vem sendo celebrado em círculos acadêmicos e por cinéfilos como uma obra que desafia a lógica tradicional da catarse, preferindo a observação paciente das relações humanas e suas falhas irreparáveis.
Um cinema de desconforto — e de amadurecimento
Mais do que contar uma história sobre mãe e filha, Hot Milk convida o espectador a refletir sobre o preço da liberdade. A independência emocional raramente vem sem dor. Há sempre algo que se perde ao se romper laços antigos. O filme não oferece respostas fáceis, nem finais redentores. E talvez aí resida sua maior força: no desconforto que reverbera, nas perguntas que ficam.
Na era do consumo rápido de entretenimento, Hot Milk aposta no oposto: na lentidão, no desconforto e na intimidade. É um filme que pede pausa, reflexão, disposição para mergulhar nos labirintos da dor e da reinvenção.





