
Não é fácil recomeçar depois de uma grande perda. Ainda mais quando se carrega a impressão de que já se viveu tudo o que havia para ser vivido. Em Sr. Blake ao Seu Dispor, o personagem principal não está em busca de aventura, sucesso ou redenção. Ele só quer, de algum modo, continuar existindo – mesmo que do outro lado do mar, fingindo ser alguém que nunca foi. E é exatamente nesse impulso silencioso que nasce uma das comédias dramáticas mais delicadas do ano, que estreia no Brasil no dia 18 de setembro, com distribuição da Mares Filmes.
O luto que transborda no silêncio
Andrew Blake é um senhor britânico como tantos outros. Elegante, educado, eficiente. Por fora, é o tipo de homem que já aprendeu a esconder tudo o que sente. Mas, por dentro, está estilhaçado. Desde a morte da esposa, Diane, ele se arrasta pelos dias com o peso do vazio. O lar se transformou em mausoléu. O trabalho, em repetição sem sentido. Então, ele toma uma decisão: voltar à França, ao lugar onde conheceu Diane e foi feliz.
Mas o reencontro com as memórias não acontece como ele imagina. Para permanecer na propriedade que hoje pertence a outra pessoa, Blake precisa aceitar o cargo de mordomo. É nesse gesto simples — o de servir — que ele encontra, quase sem querer, um novo caminho para viver.
Uma casa, seus habitantes e os afetos possíveis
A mansão para a qual Blake vai trabalhar não é apenas um cenário bonito. Ela pulsa. Como ele, é uma estrutura que já viu tempos melhores. Dentro dela, vivem personagens tão machucados quanto gentis, cada um à sua maneira. Nathalie (interpretada pela inesquecível Fanny Ardant), a dona da casa, esconde uma alma fraturada por trás de uma fachada firme. Odile (Émilie Dequenne), a governanta, tenta manter a ordem enquanto o caos lhe habita. Philippe (Philippe Bas), o jardineiro, cultiva mais do que plantas — cultiva feridas antigas. E Manon (Eugénie Anselin), jovem e intensa, desafia a rigidez com sua espontaneidade.
Juntos, eles formam uma espécie de família torta. Não por laços de sangue, mas por necessidade. Uma necessidade mútua de acolhimento, mesmo que silencioso. E Blake, que chegou ali para fugir do mundo, começa a fazer parte dele outra vez.

John Malkovich em seu papel mais vulnerável
É surpreendente que, depois de tantas décadas de carreira e performances marcantes, John Malkovich nunca tenha protagonizado um filme francês. Em Sr. Blake ao Seu Dispor, ele não só fala francês com naturalidade (ainda que com sotaque), como entrega uma atuação de uma ternura que não se vê todos os dias. Há algo no jeito contido com que ele vive Blake que nos toca profundamente. Não porque ele dramatize a dor, mas porque a deixa escorrer pelas entrelinhas.
Há momentos em que ele olha pela janela, ou limpa a louça, ou apenas respira — e tudo isso diz mais do que muitos roteiros inteiros. Não é o tipo de performance que grita para ser notada. É a performance que se planta devagar, cresce aos poucos, e floresce depois que o filme termina.
Gilles Legardinier e a coragem de contar histórias pequenas
Gilles Legardinier é um nome conhecido na literatura francesa. Seu livro Complètement Cramé!, lançado em 2012, foi traduzido para 17 idiomas e tocou milhares de leitores com seu tom caloroso. Agora, pela primeira vez, ele se aventura na direção de um longa. E acerta, justamente, por não querer impressionar.
A trama não é um filme para premiações grandiosas ou bilheterias estrondosas. É um filme para quem tem tempo. Para quem topa desacelerar. Para quem sabe que algumas das maiores transformações acontecem no silêncio de uma cozinha, num passeio pelo jardim ou em uma conversa sem palavras.
Legardinier filma com amor. Amor pelas pessoas comuns, pelos gestos cotidianos, pelas casas antigas, pelas relações improváveis. Ele nos lembra que viver é, muitas vezes, simplesmente estar disponível — ao outro, ao acaso, àquilo que a gente não entende de primeira.
O humor que aquece, não escapa
Apesar de ser rotulado como comédia dramática, o riso em Sr. Blake ao Seu Dispor nunca vem da zombaria. Ele nasce do constrangimento, da falha, do não saber. Rimos porque reconhecemos aqueles tropeços em nós mesmos. Rimos com ternura, nunca com crueldade.
Há algo profundamente humano nas situações pelas quais Blake passa. Ele erra a ordem dos talheres, confunde nomes, fica sem saber onde colocar as mãos. Mas, no fundo, tudo isso fala sobre outra coisa: a dificuldade que todos temos de encontrar nosso lugar quando a vida muda sem pedir licença.
Uma história que cruza fronteiras com gentileza
O filme estreou na França em novembro de 2023 e já passou por festivais na Polônia, nos Estados Unidos e em outros países da Europa. Sua bilheteria, de pouco menos de US$ 3 milhões, não reflete sua importância. E talvez seja isso que o torne tão necessário hoje. Em tempos de urgência, de barulho, de exagero, este é um filme que fala baixo. Que acolhe. Que nos convida a cuidar — dos outros e de nós mesmos.
















