
Era uma vez um império elegante por fora e apodrecido por dentro. Berlim, 1898. A capital da jovem Alemanha Imperial vibra com a promessa de um futuro glorioso: ciência de ponta, universidades prestigiadas, salões aristocráticos onde o saber é servido junto ao vinho e ao prestígio de sobrenomes antigos. Mas há algo que não se vê nos bailes nem nas capas dos jornais: uma semente sendo plantada — metódica, fria, disfarçada de progresso. E é nessa fresta de sombra que nasce O Testemunho, o novo romance de Santiago Delgado, historiador e escritor estreante na ficção, mas já um profundo conhecedor do período que retrata.
Em vez de entregar uma tese, Delgado nos oferece uma história que pulsa: um jovem nobre, uma descoberta perturbadora, um amor proibido e uma conspiração científica tão realista quanto assustadora. Mais do que um romance histórico, o livro é uma advertência — e, ao mesmo tempo, um convite à coragem.
Um império refinado, uma juventude perdida
Wilhelm von Richthofen é jovem, rico, promissor. Estuda em um respeitado internato da elite, onde se formam os futuros líderes do império. Mas, por trás da fachada impecável, Wilhelm vive sob a sombra de seu irmão desaparecido e carrega uma rivalidade com o brilhante e reservado Alois Schneider. Movido por ciúmes e orgulho, ele decide investigar o passado do colega — e o que descobre muda tudo.
Ao lado de Helga, irmã gêmea de Alois, Wilhelm entra num labirinto de segredos. Eles descobrem documentos confidenciais, registros médicos escondidos e pistas de um projeto eugênico financiado por figuras influentes da aristocracia e da ciência alemã. Um nome volta à tona: Joseph, irmão de Wilhelm, supostamente morto. Mas ele está vivo — e profundamente envolvido no programa.
Nas entrelinhas da alta sociedade, escondem-se campos de experimentos ilegais, onde crianças judias, ciganas, doentes mentais e indigentes são usados como cobaias. Tudo isso sob a justificativa da “melhoria racial”.
A frieza dos salões e o calor do perigo
Santiago Delgado poderia ter escrito um livro frio, acadêmico. Mas escolheu o caminho mais difícil: criar personagens de carne e osso, que erram, sentem medo, se apaixonam e resistem. Wilhelm e Helga não são heróis clássicos. São jovens assombrados, impulsivos, mas movidos por uma crescente consciência do horror que os cerca.
A atmosfera que Delgado constrói é sufocante. Os corredores das escolas são vigiados. Um padre é assassinado e pendurado de cabeça para baixo. Um crânio humano aparece com uma ameaça: “você é o próximo”. Os arquivos são queimados, testemunhas desaparecem, e o medo cresce em cada página. Não é mais uma investigação. É uma luta por sobrevivência.
Entre a paixão e o abismo
Mas há beleza também. O romance entre Wilhelm e Helga floresce em meio ao caos. Não como alívio, mas como resistência. Em tempos de crueldade institucionalizada, amar alguém é, em si, um ato político. Há ternura nas noites de fuga, nos sussurros trocados antes de uma nova investida, na partilha silenciosa de culpas.
Delgado não idealiza esse amor. Ele o apresenta com dúvidas e dilemas. Até onde vale ir? O que se arrisca por justiça? Pode-se lutar contra o próprio sangue? Essas são perguntas que o livro não responde com fórmulas, mas com escolhas difíceis — e lágrimas.
Ecos de um futuro que já conhecemos
O grande trunfo de “O Testemunho” é o desconforto que provoca. Afinal, o livro termina muito antes de Hitler chegar ao poder. E, no entanto, cada cena parece um prelúdio do que viria: os discursos sobre pureza racial em jantares sofisticados, os médicos que falam de “eficiência biológica” com frieza, as elites que preferem ignorar os abusos em nome da ciência e do avanço.
A mensagem é clara, ainda que sutil: o nazismo não começou com tanques e suásticas. Começou com ideias. Com omissões. Com salões refinados e conversas bem articuladas.
Uma leitura para quem quer sentir — e entender
Se você se emocionou com “O Leitor”, de Bernhard Schlink, ou ficou impactado com “A Menina que Roubava Livros”, de Markus Zusak, prepare-se: “O Testemunho” toca as mesmas feridas, mas com uma lupa voltada para o momento anterior à tragédia. É um livro para quem quer se apaixonar, se indignar, se perguntar — e, talvez, sair diferente depois da última página.
Não é um romance fácil. Mas é necessário.
Um historiador que escolheu contar o passado em voz alta
Santiago Delgado poderia ter mantido suas pesquisas nas estantes das universidades. Mas escolheu outro caminho. Formado em História pela PUC-SP, ele passou anos estudando os bastidores do Segundo Reich, o período entre a unificação alemã e o fim da Primeira Guerra. Ao transformar dados e documentos em literatura, Delgado torna o passado acessível — e, acima de tudo, vivo.
A escrita é minuciosa, mas fluida. Carregada de imagens vívidas, diálogos potentes e um senso de urgência. “O Testemunho” não é só um livro: é um aviso. Um lembrete de que o horror se constrói em silêncio — e de que resistir pode começar com algo tão simples quanto uma pergunta feita na hora certa.





