À primeira vista, A sabedoria das noviças: Conselhos do século XVI para problemas do século XX pode parecer apenas um exercício curioso de aproximação entre passado e presente. No entanto, o livro de Ana Garriga e Carmen Urbita revela-se muito mais ambicioso: trata-se de uma obra que revisita a história das freiras dos séculos XVI e XVII para desmontar estereótipos, recuperar vozes femininas silenciadas e, sobretudo, demonstrar que as angústias humanas atravessam o tempo com impressionante persistência.

O ponto de partida do livro é provocador. Em vez de apresentar a vida monástica como sinônimo de isolamento, repressão ou santidade inalcançável, as autoras revelam conventos como espaços de pensamento, estratégia, produção intelectual e até negociação de poder. As noviças e freiras retratadas aqui não são figuras passivas, mas mulheres que encontraram, dentro de estruturas rígidas, maneiras engenhosas de existir, criar e influenciar o mundo ao seu redor.

Santa Teresa de Ávila, Sor Juana Inés de la Cruz e Maria de Jesus de Ágreda são algumas das personagens históricas convocadas para esse diálogo improvável com o leitor contemporâneo. Longe de serem tratadas como santas intocáveis, elas surgem como mulheres de carne, ideias e contradições. Seus escritos, escolhas e episódios biográficos são reinterpretados à luz de problemas atuais, como dificuldades financeiras, desafios no ambiente corporativo, comunicação assertiva, ansiedade social e confusões afetivas.

O grande mérito do livro está na forma como essa transposição é feita. Garriga e Urbita não forçam paralelos nem recorrem a comparações artificiais. Ao contrário, constroem analogias inteligentes e bem-humoradas, capazes de iluminar tanto o contexto histórico quanto as tensões do presente. O famoso episódio da bilocação atribuída a Maria de Jesus de Ágreda, por exemplo, é reinterpretado como uma metáfora poderosa para o sentimento contemporâneo de estar sempre atrasado, desconectado ou perdendo algo nas redes sociais.

Sor Juana Inés de la Cruz ocupa um lugar central na narrativa como símbolo de inteligência feminina, resistência intelectual e domínio da palavra. Sua habilidade retórica e sua postura firme diante de autoridades masculinas servem como inspiração direta para situações modernas, como escrever um e-mail profissional sem parecer agressiva ou submissa. O livro acerta ao mostrar que, muito antes das discussões atuais sobre comunicação assertiva, essas mulheres já dominavam a arte de se posicionar em ambientes hostis.

A escrita das autoras é leve, irônica e convidativa. O texto evita o tom acadêmico tradicional e aposta em uma linguagem acessível, repleta de referências à cultura pop, ao universo corporativo e às dinâmicas das relações afetivas contemporâneas. Essa escolha torna a leitura fluida e prazerosa, ainda que, em alguns momentos, sacrifique maior profundidade teórica. Ainda assim, trata-se de uma decisão coerente com a proposta do livro: aproximar, não afastar.

Outro aspecto relevante é a forma como A sabedoria das noviças contribui para a revisão da história sob uma perspectiva feminina. Ao recuperar essas trajetórias, o livro evidencia o quanto a vida monástica foi, paradoxalmente, um dos poucos espaços onde mulheres puderam estudar, escrever, ensinar e exercer algum grau de autonomia intelectual. Essa leitura não romantiza o convento, mas reconhece sua complexidade como espaço de limitação e, ao mesmo tempo, de possibilidade.

Embora o subtítulo mencione problemas do século XX, o diálogo estabelecido pela obra é ainda mais pertinente ao século XXI. Questões como ansiedade, pressão por produtividade, medo de exclusão social e insegurança emocional atravessam o livro de maneira clara e atual. Nesse sentido, a obra funciona menos como um manual de conselhos e mais como um convite à reflexão, usando o humor e a história como ferramentas de acolhimento.

A sabedoria das noviças é um livro que diverte, informa e provoca. Ao transformar figuras históricas em interlocutoras contemporâneas, Ana Garriga e Carmen Urbita constroem uma obra que questiona nossas certezas, relativiza nossos dramas e oferece um olhar surpreendentemente reconfortante sobre o presente. Uma leitura inteligente e criativa, que reafirma que, independentemente da época, as dúvidas humanas seguem as mesmas e que a sabedoria, muitas vezes, já foi escrita há séculos, apenas esperando ser redescoberta.

Avaliação geral
Nota do crítico
Esdras Ribeiro
Além de fundador e editor-chefe do Almanaque Geek, Esdras também atua como administrador da agência de marketing digital Almanaque SEO. É graduado em Publicidade pela Estácio e possui formação técnica em Design Gráfico e Webdesign, reunindo experiência nas áreas de comunicação, criação visual e estratégias digitais.
resenha-a-sabedoria-das-novicas-prova-que-as-inquietacoes-modernas-ja-atormentavam-mulheres-brilhantes-ha-seculosA sabedoria das noviças: Conselhos do século XVI para problemas do século XX propõe um diálogo criativo entre passado e presente ao revisitar a vida e o pensamento de freiras dos séculos XVI e XVII. A partir de figuras como Santa Teresa de Ávila, Sor Juana Inés de la Cruz e Maria de Jesus de Ágreda, o livro desconstrói estereótipos sobre a vida monástica e apresenta essas mulheres como inteligentes, estratégicas e emocionalmente lúcidas. Unindo história, humor e referências contemporâneas, a obra traduz dilemas modernos — como carreira, dinheiro, relações afetivas e ansiedade — à luz de experiências históricas, mostrando que muitas inquietações atuais já foram vividas e refletidas há séculos.

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