Resenha – A Sombra do Torturador é um clássico intrigante com luzes e sombras

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Foto: Reprodução/ Almanaque Geek

Gene Wolfe é um autor frequentemente reverenciado dentro da ficção científica e da fantasia especulativa, e A Sombra do Torturador — primeiro volume da série O Livro do Sol Novo — é tido por muitos como seu trabalho mais emblemático. A obra narra as memórias de Severian, um aprendiz da guilda dos torturadores, que vive em um mundo chamado Urth, uma Terra futura e decadente, onde tecnologia e misticismo coexistem sob um véu de ignorância e tradição feudal.

A premissa é instigante. Wolfe nos introduz a um universo que, à primeira vista, remete à fantasia medieval, mas que aos poucos revela pistas de um passado tecnológico avançado — naves espaciais, alienígenas e ruínas de eras esquecidas aparecem apenas como sombras, memórias distorcidas por milênios. O autor escolhe construir sua narrativa por meio de um narrador pouco confiável, o próprio Severian, que tenta reconstruir sua trajetória com um tom confessional e quase mítico. Isso funciona… até certo ponto.

Um começo promissor que perde o fôlego

A jornada de Severian começa de forma sólida. Ele é curioso, inteligente e visivelmente dividido entre o que aprendeu com sua guilda e o que começa a sentir por conta própria. Quando se apaixona por Thecla, uma prisioneira nobre condenada à tortura, vemos surgir a primeira grande rachadura em sua lealdade — e, teoricamente, o ponto de virada do personagem.

Só que essa complexidade inicial dá lugar a um roteiro repetitivo: Severian segue viagem após ser expulso da guilda, vivendo aventuras episódicas, conhecendo personagens (geralmente mulheres que se encantam por ele sem muito esforço narrativo), dominando habilidades com espadas quase do nada e avançando rumo a um tal “destino grandioso” que nunca se justifica de forma convincente. É como se o personagem passasse de promissor a uma caricatura de herói trágico num piscar de olhos.

Narrativa densa ou apenas dispersa?

Muito se diz que Wolfe é um autor “difícil”. Mas A Sombra do Torturador não é, em si, um livro complicado. Ele apenas exige atenção e, talvez, um dicionário por perto — principalmente porque o autor adota uma linguagem arcaica e evita qualquer glossário ou explicação direta. Isso não é um problema por si só. O que realmente pesa é o ritmo quebrado, o excesso de digressões e o enredo que mais parece um mosaico de cenas do que uma trama que progride.

A escrita, muitas vezes louvada como brilhante, soa ornamental demais após certo ponto, perdendo impacto à medida que Wolfe se afasta da construção dramática inicial e se entrega a um desfile de personagens misteriosos e situações mal resolvidas.

Sexualidade e representação: o velho problema de sempre

Um dos pontos mais desconfortáveis da leitura é o tratamento dado às personagens femininas. Não é apenas o fato de Severian se apaixonar por praticamente toda mulher que encontra — o que, convenhamos, já seria cansativo. É a forma como o autor insiste em descrever constantemente seios, quadris e outras partes do corpo feminino com um olhar quase obsessivo. As mulheres são, em sua maioria, coadjuvantes sexuais, moldadas para se entregar ao protagonista com pouca ou nenhuma construção.

Esse olhar masculino antiquado é algo comum em parte da ficção científica clássica, mas não deveria ser normalizado. Em pleno século XXI, o status de “clássico” precisa ser questionado quando o que se vê é uma sucessão de mulheres bidimensionais e erotizadas ao redor de um protagonista egocêntrico e mal desenvolvido.

E afinal, por que ele está contando essa história?

Outro ponto que enfraquece a experiência é a própria estrutura da narrativa. Sabemos que Severian é um narrador não confiável. Sabemos também que Wolfe, dentro da lógica do livro, se coloca como o “editor” do manuscrito original. Mas… qual o propósito da história que nos é contada? Qual o contexto? Por que deveríamos confiar em qualquer coisa dita? A ausência de pistas ou direção sobre as intenções do protagonista (ou do próprio autor) acaba tornando a leitura frustrante, especialmente para quem não pretende seguir com os outros volumes.

Avaliação geral
Nota do crítico
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Esdras Ribeiro
Além de fundador e editor-chefe do Almanaque Geek, Esdras também atua como administrador da agência de marketing digital Almanaque SEO. É graduado em Publicidade pela Estácio e possui formação técnica em Design Gráfico e Webdesign, reunindo experiência nas áreas de comunicação, criação visual e estratégias digitais.
resenha-a-sombra-do-torturador-e-um-classico-intrigante-com-luzes-e-sombrasSeverian é moldado por símbolos, mas também por conveniências narrativas. A Sombra do Torturador tem méritos inegáveis: uma ambientação intrigante, conceitos ousados e um mundo rico em possibilidades. Mas falha em sua execução emocional, no desenvolvimento de seu protagonista e — mais grave — na forma como trata o feminino. Gene Wolfe pode até ser um autor visionário para alguns, mas neste livro, sua ambição supera sua sensibilidade, e o resultado é uma obra que começa bem, mas termina como um monumento ao potencial desperdiçado.

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