Segredo Filmes: 12 anos de cinema feito por mulheres, com o corpo, a voz e a urgência de quem nunca foi ouvida

0
Foto: Reprodução/ Internet

No silêncio da sala escura, há um cinema que não pede licença para existir. Ele fura a pele, atravessa ossos, ecoa por dentro. É o cinema da Segredo Filmes, produtora fundada em 2013, em Salvador, pelas cineastas Josi Varjão e Lilih Curi. Um cinema que não nasce para entreter — mas para revelar, denunciar, curar, tensionar. E, acima de tudo, para colocar no centro as histórias que o país prefere varrer para debaixo do tapete.

São 12 anos de estrada. Mas não uma estrada fácil, com asfalto e placas. É um caminho escavado com as mãos, na unha, contra tudo que tentou apagar duas mulheres — uma negra, nordestina, lésbica, e outra lésbica, filha de um homem com deficiência auditiva. O resultado é um catálogo denso, sensível e absolutamente necessário.

Histórias que doem — e, por isso, precisam ser contadas

A filmografia da Segredo Filmes parece nascer de feridas abertas. “Carmen”, de 2013, já trazia a marca do incômodo: a violência contra uma mulher com deficiência auditiva. Em “Teresa” (2014), o abandono, a maternidade imposta, o silêncio social. Em “Carolina”, a deficiência física aparece não como símbolo de superação, mas como parte de uma mulher artista, nordestina, cheia de camadas. Nenhuma delas é só “uma coisa”. Cada personagem é um universo — como na vida real.

E talvez aí resida a essência da Segredo: fazer cinema com gente viva, e não com estereótipos.

“Os nossos filmes são ficções porque documentar a própria dor todos os dias seria insuportável”, diz Lilih. “Ficcionamos para sobreviver. Mas o que contamos é real. A lesbofobia, a solidão da mulher negra, a falta de acesso, a violência familiar. Tudo está ali, em código, em cena, em carne.”

Quando o segredo vira denúncia

O nome da produtora não é metáfora. É literal. “Segredo” é o que se esconde — e o que precisa, um dia, explodir. Em 2025, essa explosão vem em novas formas: o documentário “Restauro”, sobre as memórias que faltam nas fotos da infância de Josi Varjão; “Moira”, sobre uma mulher com deficiência visual pela Síndrome de Stargardt; e “Anastácia”, que estreou em uma sessão fechada para a indústria no prestigiado Festival de Clermont-Ferrand, na França — sendo um dos cinco curtas brasileiros selecionados.

Tem ainda “Angélica”, já em pré-produção, e planos para novas séries e longas. Mas nenhuma obra escapa da pergunta que acompanha a produtora desde o primeiro roteiro: “O que eu quero dizer? Por que quero dizer? E quem nunca pôde dizer antes de mim?”

Equidade não é gentileza, é urgência

Para Josi Varjão, a luta é também por estrutura. “Temos editais com indutores de diversidade, mas não é o bastante. Precisamos de cotas para mulheres cis e trans. Somos mais de 50% da população consumindo conteúdo feito majoritariamente por homens. Isso precisa ser corrigido por política pública. Cotas são justiça — não privilégio.”

E ela completa: “O feminismo que praticamos é sobre a equidade real, não só no discurso. É sobre um país em que as mulheres possam existir em todas as telas, atrás das câmeras e nas decisões. Só assim deixamos de ser exceção.”

Acessibilidade como ética, e não como bônus

A deficiência não é uma pauta acessória nos filmes da Segredo. É central. É raiz. O pai de Lilih tinha deficiência auditiva. O de Josi, usava muletas. Elas sabem do que falam. “A acessibilidade não é algo que colocamos depois, por obrigação. Ela está na origem do que criamos. É prática social, é respeito, é política.”

Por isso criaram também iniciativas como a Mostra Acessível de Curtas e o Cineclube Clara de Assis — espaços de difusão, formação e encontro. A produtora também tem colaborações com canais como Futura, Canal Brasil e Globoplay, levando suas histórias para ainda mais gente.

Com sede em Salvador e atuação constante em São Paulo, Rio, Belo Horizonte e outras regiões, a Segredo Filmes é a prova viva de que o centro da produção audiovisual brasileira pode — e deve — se descentralizar. E que é possível fazer um cinema autoral, político e tocante mesmo longe dos grandes polos e orçamentos, desde que se tenha o que dizer — e para quem dizer.

COMENTE

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui