
Há artistas que retornam para ocupar um espaço. E há aqueles que voltam para reinventá-lo. Kevin Parker, o cérebro criativo por trás do Tame Impala, nunca seguiu mapas, trilhas ou convenções. Ele constrói as próprias rotas — tortuosas, sensoriais, muitas vezes inclassificáveis. E agora, depois de anos em relativo silêncio, ele reaparece com “End of Summer”, sua primeira faixa pela Sony Music. O que poderia ser apenas mais um lançamento, na verdade, revela-se uma transformação profunda: o fim de um ciclo e a abertura de um novo portal sonoro.
Mas “End of Summer” não é sobre estações. É sobre transições internas. Sobre aquele momento tênue entre o que já foi e o que ainda não chegou. Como um pôr do sol que parece durar horas, a faixa nos transporta para um tempo onde a batida é memória e o som é sensação. Um lugar onde o passado e o futuro se fundem numa rave existencial.
Um som que não se ouve: se sente
Logo nos primeiros segundos da faixa, fica claro que Parker não está interessado em agradar o algoritmo. “End of Summer” é uma obra que se arrasta — no bom sentido. Ela não corre. Ela respira. Há nela uma confiança rara: a de um artista que sabe que o impacto não está no volume, mas na densidade emocional.
Com fortes influências da cena acid house de 1989, das festas ilegais em galpões britânicos e dos bush doofs australianos (aquelas celebrações eletrônicas em meio à natureza selvagem), a música carrega uma carga quase ritualística. O tipo de faixa que parece feita não para dançar, mas para atravessar. Para ser vivida em silêncio interno, com os olhos fechados e a alma em movimento.
A textura da produção é granulada, crua, alucinante. Parker constrói camadas que se dissolvem e se reorganizam com precisão quase invisível. Ele não entrega refrões — entrega atmosferas. Não entrega letras — entrega sensações. Em um mundo saturado por músicas feitas para durar 30 segundos no TikTok, “End of Summer” soa como um manifesto.
A solitude criativa de um gênio sonoro
Kevin Parker não tem banda. Nunca teve. Tame Impala é uma miragem coletiva guiada por uma única mente. Desde InnerSpeaker (2010), Parker escolheu seguir sozinho no estúdio: toca todos os instrumentos, compõe, grava, produz e ainda mixa. Ele é uma orquestra de um homem só — e o silêncio entre as notas parece tão planejado quanto cada acorde.
Mas ao contrário do que se imagina, essa solidão criativa nunca soou fria. As músicas de Parker sempre foram íntimas. Mesmo as mais dançantes escondem um quê de vulnerabilidade, de confissão. “End of Summer” é a continuidade dessa estética emocional, agora mais abstrata, mais dilatada. Como se, após anos testando melodias pop, ele tivesse se libertado da obrigação de cantar, de explicar, de conduzir.
Nesta faixa, Parker fala sem palavras. E diz muito.
Uma imagem que expande o som
Junto à música, veio também um curta-metragem dirigido pelo artista Julian Klincewicz — nome conhecido na cena visual por criar trabalhos que flutuam entre o documental e o onírico. Em “End of Summer”, Klincewicz entrega mais do que um clipe: ele oferece uma extensão do som, um prolongamento daquilo que não cabe nas frequências.
Filmado em tons nostálgicos, com granulações que evocam lembranças desfocadas, o vídeo acompanha personagens em cenários abertos, contemplativos, quase estáticos. Não há narrativa linear. Mas há atmosfera. E é exatamente isso que Kevin Parker tem feito ao longo de sua carreira: construir atmosferas que dizem mais que histórias.
O casamento entre som e imagem em “End of Summer” reafirma uma ideia que Parker sempre cultivou: a de que a música é uma experiência sensorial completa. Um estado alterado. Uma viagem interior.
A leveza de quem já conquistou tudo
Hoje, Kevin Parker poderia se acomodar. Ele tem prêmios — BRIT, ARIA, indicações ao Grammy. Tem números: bilhões de streams, faixas no topo das paradas alternativas, hits que ultrapassaram a bolha do indie. “The Less I Know The Better” se tornou um clássico instantâneo, tão presente em pistas quanto em trilhas sonoras de séries adolescentes. Tame Impala foi de festival cult a cabeça de cartaz do Coachella.
Além disso, Parker é requisitado pelas maiores estrelas do mundo: Dua Lipa, Lady Gaga, The Weeknd, Rihanna, Travis Scott. Ele produz, colabora, experimenta — sempre deixando sua marca sônica inconfundível. E mesmo assim, nunca pareceu se deslumbrar.
Em vez de repetir fórmulas, ele se recolhe. Sente. Pesquisa. Muda. E quando reaparece, como agora, é sempre com algo novo, desafiador, vivo.
Um futuro onde a música respira
A escolha de lançar “End of Summer” pela Sony Music também diz muito. Pode parecer apenas uma troca de gravadora, mas há algo simbólico nisso. Parker agora tem uma plataforma ainda maior — mas não comprometeu sua independência artística. A canção, densa e experimental, é a prova de que ele ainda é guiado por uma bússola interna, não por tendências.
E talvez esse seja o maior feito de Tame Impala: resistir à tentação de se tornar um produto. Mesmo com todo o sucesso, Kevin Parker continua fazendo música que nasce de um lugar profundo, que respeita o tempo do silêncio, da contemplação. Ele faz arte em uma era de conteúdo.
“End of Summer” não quer viralizar. Quer vibrar. E se conectar.
A dança invisível
Escutar “End of Summer” é como entrar em um sonho lúcido. Um espaço onde tudo parece se mover lentamente, como debaixo d’água. Não há pressa. Não há clímax. A música não chega a lugar nenhum — porque já está em todos os lugares. Ela pulsa, respira, dissolve-se no ouvinte.
É uma dança invisível. Um feitiço eletrônico. Um eco do que já vivemos e do que ainda não conseguimos nomear.
No fim, não é sobre o verão que termina. É sobre aquilo que fica. Aquela luz laranja que paira no céu quando o sol já se pôs, mas ainda não escureceu. Aquele som que não escutamos com os ouvidos, mas com o corpo inteiro. Aquele tipo raro de música que não se consome: se atravessa.
E enquanto Tame Impala nos guia, mais uma vez, por essa trilha sem mapa, tudo o que podemos fazer é fechar os olhos… e deixar a batida nos levar.
















