
Se tem um diretor no Brasil que nunca joga seguro, esse é Kleber Mendonça Filho. E em O Agente Secreto, seu novo filme, ele prova mais uma vez que está interessado em muito mais do que apenas contar uma história — ele quer nos colocar dentro dela, nos fazer desconfortáveis, atentos, e, de alguma forma, cúmplices.
O longa, que fez sua estreia mundial em Cannes e saiu de lá coroado com prêmios importantes — incluindo Melhor Direção para Mendonça e Melhor Ator para Wagner Moura — chega aos cinemas brasileiros cercado de expectativa. E com razão. O filme é um daqueles que dividem opiniões, mas dificilmente deixam alguém indiferente.
Recife, 1977: onde tudo ferve
Recife volta a ser o coração pulsante do cinema de Mendonça Filho, mas dessa vez a cidade é outra. A capital pernambucana retratada no filme é sombria, densa, cheia de segredos e câmeras imaginárias. É 1977, época de ditadura, censura e paranoia — e o ar parece pesar a cada esquina.
É nesse cenário que conhecemos Marcelo, um ex-acadêmico que tenta sobreviver à margem do sistema. Só que logo descobrimos que ele também é Armando — e que as identidades, no mundo que o cerca, são tão instáveis quanto a própria noção de verdade.
Wagner Moura dá vida a esse homem dividido com uma intensidade impressionante. Ele é calado, mas fala muito com o olhar. É o tipo de personagem que carrega o peso do país inteiro nos ombros — e de algum modo, a gente sente junto.

Um thriller político que não entrega o jogo
Quem for ao cinema esperando um suspense com tiros, perseguições e conspirações no estilo hollywoodiano pode se frustrar. O longa-metragem é outro tipo de thriller. Aqui, a tensão não vem da ação — vem do não dito, do olhar desconfiado, da sensação de estar sendo observado o tempo todo.
Kleber Mendonça Filho brinca com os códigos do gênero, mas os vira do avesso. Nada é simples, nada é direto. Há momentos em que a trama parece se perder em digressões, em lembranças, em detalhes aparentemente banais — mas é aí que o diretor encontra a força de seu cinema. Cada fragmento, cada corte, cada silêncio constrói algo maior: o retrato de um país tentando se entender.
E é impossível não notar o paralelo com o presente. Ainda que a história se passe em 1977, há ecos que ressoam até hoje — o controle, o medo, a manipulação da verdade. Mendonça parece dizer, com ironia e tristeza: o tempo passa, mas o jogo continua o mesmo.
Wagner Moura, em estado de arte
É impossível falar de O Agente Secreto sem destacar Wagner Moura. O ator, que há tempos vem equilibrando grandes produções e projetos autorais, entrega aqui uma de suas performances mais complexas. Seu personagem é um enigma: intelectual, fugitivo, idealista e, ao mesmo tempo, cúmplice de seu próprio silêncio.
Há uma cena — sem spoilers — em que Armando simplesmente observa o reflexo de si mesmo em uma janela suja, enquanto uma rádio toca notícias do regime. É um momento de puro cinema, onde nada acontece e tudo acontece. Moura segura a câmera com o olhar, e a gente entende por que ele saiu de Cannes com o prêmio de Melhor Ator.
O elenco de apoio também se destaca: Maria Fernanda Cândido é pura elegância e firmeza; Gabriel Leone traz juventude e inquietação; Alice Carvalho surpreende em uma presença breve, mas intensa; e Udo Kier empresta ao filme aquela aura enigmática que só ele tem.

Um espelho, não um retrato
No fundo, a trama é menos sobre espionagem e mais sobre memória. É um filme que nos faz pensar sobre o que escondemos, o que preferimos não ver, e o que fingimos ter esquecido.
É cinema que pede envolvimento — o tipo de obra que não acaba nos créditos finais, mas continua ecoando depois, nas conversas, nos silêncios, na sensação de que há algo de nós ali.
Talvez por isso o público saia do cinema com sentimentos mistos: fascínio, confusão, angústia. E isso é ótimo. Porque Mendonça não quer respostas. Ele quer diálogo. Quer que a gente se perca um pouco — para se encontrar em outro lugar.
Vale a pena assistir?
Vale — e muito.
Mas não vá esperando um passatempo. O Agente Secreto é daqueles filmes que pedem tempo, atenção e entrega. Ele não facilita, não explica, não embala. E é justamente isso que o torna tão poderoso.
É cinema feito com coragem, com inteligência e com amor pelo que o cinema pode ser: um instrumento de reflexão, de resistência e de arte.





