Crítica | Springsteen: Salve-me do Desconhecido é uma cinebiografia visceral que revela o homem por trás da música

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Sob a direção precisa e sensível de Scott Cooper, Springsteen: Salve-me do Desconhecido apresenta um olhar profundamente íntimo e humanizado sobre Bruce Springsteen, afastando-se do formato tradicional das cinebiografias musicais. O filme concentra-se no processo de criação de Nebraska (1982) — um dos álbuns mais sombrios e introspectivos do artista — e nas batalhas emocionais e psicológicas que o acompanharam durante aquele período decisivo.

Em vez de reproduzir a ascensão de um ídolo ou o glamour da fama, Cooper constrói uma narrativa sobre o homem por trás do mito, revelando suas fragilidades, dilemas e a luta constante por autenticidade em meio às pressões da indústria musical. O resultado é uma obra contemplativa e honesta, que transforma a vulnerabilidade em força narrativa.

A estrutura do roteiro — marcada por idas sutis ao passado e momentos de profunda introspecção — reflete a turbulência interior do protagonista. Cooper conduz a câmera com paciência e empatia, permitindo que cada silêncio e cada gesto revelem mais do que as palavras poderiam expressar. A alternância entre flashbacks da infância e cenas de solidão adulta cria um retrato coeso de um artista dividido entre o amor pela música e o peso de suas próprias sombras.

O filme se destaca também por sua abordagem madura da saúde mental. A depressão, o isolamento e a dificuldade de se abrir ao outro são tratados com delicadeza e sem excessos melodramáticos. Springsteen: Salve-me do Desconhecido não procura romantizar o sofrimento, mas compreender suas origens e consequências. Nesse sentido, a relação entre Bruce e Faye Romano (vivida por Odessa Young) é um dos pontos mais sensíveis da narrativa. As cenas entre ambos os personagens alternam ternura e frustração, revelando como a instabilidade emocional pode corroer até os vínculos mais profundos.

Jeremy Allen White entrega aqui uma das performances mais complexas e contidas de sua carreira. Ele desaparece por completo no papel de Springsteen, equilibrando vulnerabilidade e força com precisão. Cada olhar e cada pausa carregam uma densidade que traduz a solidão de um homem dividido entre a necessidade de criar e o medo de se perder no processo. Jeremy Strong, no papel do empresário e confidente Jon Landau, atua como contraponto emocional — uma âncora de humanidade em meio à tormenta. O elenco de apoio, com destaque para Paul Walter Hauser, Stephen Graham e Odessa Young, contribui de maneira significativa para a veracidade do retrato humano construído por Cooper.

A direção de fotografia reforça o caráter introspectivo do filme. Tons frios e paisagens desoladas evocam a atmosfera melancólica do álbum Nebraska, enquanto a iluminação suave e os enquadramentos contemplativos transformam a solidão em poesia visual. A trilha sonora — marcada por composições minimalistas e momentos de silêncio absoluto — dialoga com o estado emocional do protagonista, funcionando como uma extensão de sua consciência. Cooper adota um ritmo deliberadamente lento, permitindo que o espectador sinta a passagem do tempo e o peso das emoções, em vez de apenas observá-los.

Mais do que uma cinebiografia, Springsteen: Salve-me do Desconhecido é um estudo sobre autenticidade, dor e redenção. Cooper não se interessa apenas pela figura pública, mas pelo processo de reconstrução de um homem que, diante da própria escuridão, encontra na arte uma forma de sobrevivência. O filme propõe uma reflexão universal sobre a tensão entre liberdade criativa e pressão comercial — um conflito atemporal que ressoa com força na era dos algoritmos e da cultura imediatista.

O desfecho, longe de buscar soluções fáceis, aponta para uma esperança silenciosa: mesmo nas fases mais sombrias, há espaço para cura, reconciliação e reconexão consigo mesmo. A jornada de Springsteen é, afinal, a de qualquer artista — e, em última instância, a de qualquer ser humano que luta para se manter verdadeiro em meio ao caos.

Com direção refinada, atuações impecáveis e uma abordagem emocionalmente honesta, Springsteen: Salve-me do Desconhecido se consolida como uma das cinebiografias mais impactantes dos últimos anos. É uma obra densa e poética, que transcende o retrato do ícone para revelar o homem — e nos recorda que, por trás de cada canção, há sempre alguém tentando compreender o próprio silêncio e se salvar do desconhecido interior.

Resenha – Feitos Um Para o Outro é um romance sobre as dores e contradições do crescer juntos

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Foto: Reprodução/ Almanaque Geek

Feitos Um Para o Outro, da autora italiana Biondi, é um romance que se apresenta inicialmente como uma delicada narrativa sobre um casal jovem tentando se encontrar na turbulência dos primeiros anos da vida adulta. A trama, situada em Bolonha, acompanha Manuel e Mia, dois jovens que dividem um pequeno quarto num alojamento estudantil, imersos em uma realidade marcada por sonhos, inseguranças e as pressões da independência.

A escrita de Biondi revela sensibilidade e sutileza ao retratar as nuances emocionais de um relacionamento em sua fase inicial — sem recorrer ao melodrama exagerado ou a clichês desgastados. O texto navega habilmente entre as esperanças e as dúvidas típicas de quem encara o futuro com certa ansiedade, traduzindo em diálogos naturais e cenas cotidianas as tensões entre afeto e conflito.

No entanto, apesar de suas qualidades narrativas, o livro carrega uma controvérsia que polariza opiniões: o tratamento dado à traição cometida por Mia.

Aqui reside o principal desafio da obra. A autora escolhe abordar a traição de forma relativamente superficial, sem aprofundar as complexas implicações emocionais e éticas do ato. A decisão unilateral de Mia — que pede demissão sem diálogo prévio, abalando a estabilidade financeira que ambos buscavam — e, sobretudo, a traição, são fatos que poderiam render uma análise profunda sobre maturidade, confiança e consequências. Contudo, Biondi opta por minimizá-los na narrativa.

Além disso, Mia é retratada com uma ambiguidade problemática: sua postura parece simbolizar uma resistência ao amadurecimento. Ela valoriza o lazer e a liberdade ao lado dos amigos e rejeita a cobrança legítima de Manuel por responsabilidade e compromisso. Por sua vez, Manuel, que sonha em ser escritor e trabalha numa pizzaria para se sustentar, é caracterizado como alguém quase obsessivo e desequilibrado, numa inversão que gera desconforto, pois coloca a vítima da traição como antagonista da história.

Essa dinâmica – que transforma Manuel em um “vilão” na percepção da própria parceira e do círculo social dela – levanta questões importantes sobre representação de gênero, responsabilidade afetiva e o que se considera “culpa” num relacionamento. A narrativa, ao promover uma reconciliação rápida e quase sem consequências reais, perde a oportunidade de explorar os dilemas e as dores que acompanham uma traição, assim como a reconstrução (ou não) da confiança.

Para leitores que valorizam a profundidade emocional e a coerência psicológica, o livro pode parecer simplista ou até ingênuo na resolução dos conflitos. O perdão, no romance, não exige tempo, nem reflexão profunda, nem crescimento genuíno — e isso pode soar como uma romantização perigosa de uma falha grave.

Contudo, é justamente essa ambivalência que torna Feitos Um Para o Outro um texto instigante. A obra não oferece respostas definitivas nem pretende julgar seus personagens com rigidez moral. Em vez disso, convida o leitor a refletir sobre as complexidades do amor jovem, as contradições do amadurecimento e os limites da tolerância nas relações afetivas.

Manuel e Mia são personagens imperfeitos, com sonhos conflituosos e inseguranças típicas da idade. Talvez eles nunca tenham sido, na realidade, “feitos um para o outro” no sentido romântico idealizado, mas são, sim, retratos verossímeis da confusão que é crescer amando.

Em síntese, Feitos Um Para o Outro é uma obra recomendada para leitores que buscam mais do que um romance açucarado, que estejam dispostos a enfrentar as sombras e os incômodos do amor real. É um convite a entender que a vida adulta, com suas responsabilidades e escolhas, nem sempre permite finais lineares ou simples — e que o amor, por mais lindo que seja, também é um terreno de complexidade e desafio.

Crítica – Lilo & Stitch ganha live-action emocionante que honra o original e emociona com novas camadas

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A versão live-action de Lilo & Stitch surpreende ao conseguir capturar — com sensibilidade e criatividade — a essência do clássico animado, sem abrir mão de inovações bem-vindas. O filme preserva aquela atmosfera acolhedora e divertida que marcou gerações, ao mesmo tempo em que oferece atualizações pontuais que enriquecem a narrativa.

O roteiro é coeso e respeita o material original, mesmo com algumas alterações de falas e cenas. Em vez de descaracterizar a história, essas mudanças ajudam a ampliar a profundidade emocional dos personagens. A trama, que já era comovente, ganha aqui novos detalhes que reforçam o vínculo entre os protagonistas e criam momentos ainda mais tocantes.

Um dos grandes acertos está na direção, que conduz a história com ritmo envolvente e olhar atento às emoções. A relação entre Lilo e Nani ganha protagonismo, tornando-se o verdadeiro coração do filme. A conexão entre as irmãs é retratada com delicadeza e realismo, o que torna a experiência ainda mais íntima e comovente.

Já Stitch — que continua carismático como sempre — assume um papel um pouco mais coadjuvante, mas ainda essencial. Ele continua sendo o agente do caos afetuoso que conhecemos, mas agora inserido em um contexto que dá mais espaço para o drama familiar das irmãs, sem perder o equilíbrio com os momentos de humor e aventura.

No geral, o live-action de Lilo & Stitch supera expectativas ao entregar um filme bonito, emocionante e fiel ao espírito da animação. É uma produção que respeita a memória afetiva do público, mas que também não tem medo de ousar com novas abordagens. Um raro caso em que a Disney acerta em cheio ao adaptar um clássico para as telas contemporâneas.

Crítica – M3GAN 2.0 é insana, hilária e melhor do que o original — um terror que sabe rir de si mesmo

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Foto: Reprodução/ Internet

No segundo capítulo da franquia, M3GAN 2.0 mostra que não foi só a androide assassina que precisou evoluir — o próprio terror aqui passa por uma reinvenção. O filme abandona o susto fácil dos jump scares para investir em algo mais instigante: o medo moderno, existencial, profundamente humano diante do avanço descontrolado da tecnologia.

Mas que fique claro: M3GAN 2.0 não tenta ser um tratado sério sobre inteligência artificial. Pelo contrário. Ele se diverte com o próprio exagero, assume sua veia cômica e entrega uma comédia de terror deliciosamente absurda, que ri de si mesma e do mundo ao redor.

Um espetáculo de horror, risos e absurdo

Fazia tempo que o cinema de terror não se permitia rir tanto — e com tanto estilo. M3GAN 2.0 é hilário, levemente surreal, assumidamente tolo e, por isso mesmo, surpreendentemente inteligente. É raro ver uma continuação que supera seu original em praticamente todos os aspectos, mas aqui o feito é alcançado com coragem e muita personalidade.

A sequência de maior destaque talvez seja a mais improvável: um grupo de M3GANs executando uma performance sincera de “This Woman’s Work”, de Kate Bush. O choque entre a música e o contexto é tão inusitado, tão incrivelmente bem coreografado, que o momento beira o sublime. É cinema trash em sua forma mais sofisticada e autoconsciente — um delírio audiovisual que arranca risos pela ousadia, não pela paródia.

Elenco afiado, roteiro esperto e comentários sociais pontuais

O elenco brilha, com atuações precisas que equilibram bem o tom entre o nonsense e o drama. Alison Williams, em especial, entrega uma performance fria, quase robótica, que encaixa perfeitamente com o clima do filme. Sua personagem é o eixo de tensão e equilíbrio entre o absurdo e a crítica — e ela domina a tela com segurança do começo ao fim.

Apesar de o roteiro apoiar-se em clichês previsíveis, isso não compromete a experiência. Pelo contrário: os lugares-comuns são usados com ironia e timing cômico impecável. E os comentários sobre regulamentação de inteligência artificial surgem aqui e ali de forma inesperadamente pertinente — quase como provocações sutis em meio ao caos cênico. É um filme que ri, mas também pensa.

Resenha – Esqueça o Meu Nome é um quadrinho que transforma lembrança em ferida

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Foto: Reprodução/ Almanaque Geek

Zerocalcare nunca foi um autor de histórias leves — e ainda bem. Em Esqueça o Meu Nome, sua nova graphic novel, o quadrinista italiano mais vendido da atualidade entrega algo ao mesmo tempo confessional e desconcertante: um mergulho em suas próprias memórias, onde realidade e fantasia se confundem a ponto de o leitor não saber mais onde termina o trauma e começa a invenção.

O ponto de partida é simples — a morte da avó —, mas nada em Zerocalcare é simples de verdade. A perda desencadeia uma avalanche de lembranças, culpas e perguntas que ele nunca quis fazer. O resultado é um retrato honesto e melancólico de um homem tentando entender o que sobrou de si depois que a infância foi embora.

Quando o luto vira labirinto

O autor transforma o luto em um labirinto visual e emocional. Cada quadro parece desenhado com a mão trêmula de quem ainda está tentando processar o que viveu. As linhas são imperfeitas — propositalmente —, e nelas há algo de cru, quase desconfortável. É o tipo de arte que não quer agradar, quer atingir.

A HQ alterna momentos de lembrança real com delírios fantásticos, monstros simbólicos e cenas que beiram o pesadelo. E isso funciona porque o leitor entende: a dor não é linear. O que Zerocalcare faz é materializar o caos interno, transformar a memória em algo palpável — mesmo que isso doa.

A infância como campo de batalha

Há uma ideia forte que atravessa todo o livro: a de que crescer é uma espécie de traição. Ao revisitar o passado, o autor percebe que a inocência não desaparece de repente — ela é arrancada aos poucos, junto com a fé em quem éramos. A avó, nesse contexto, é mais do que uma figura familiar: é o último elo com o que foi puro, antes que o peso da sociedade e da culpa tomasse conta.

E é nessa camada que Zerocalcare mostra maturidade narrativa. Ele não idealiza o passado — expõe suas rachaduras. A casa da avó, os objetos esquecidos, as fotos antigas, tudo serve como espelho de um protagonista que tenta entender de onde veio e, principalmente, por que ainda não sabe para onde vai.

Arte que sangra

Visualmente, o quadrinho é de um vigor impressionante. Zerocalcare domina o contraste entre cores fortes e sombras densas, criando uma atmosfera entre o sonho e o pesadelo. As criaturas que habitam suas páginas não são monstros externos — são os medos, as lembranças e as culpas que ele carrega.

Ainda assim, há beleza na dor. As cores gritam, os traços tremem, mas há uma sensibilidade quase poética em cada quadro. É arte feita de cicatrizes — e, curiosamente, é aí que ela se torna universal.

Um livro que exige entrega

“Entre o que fica e o que vai”, Zerocalcare entrega uma história corajosa, mas que também pode afastar quem espera algo mais “linear”. O ritmo é fragmentado, as transições são abruptas e a mistura entre realidade e delírio exige do leitor mais atenção do que costumeiramente se pede em uma HQ.

Mas talvez seja esse o ponto: a vida também não tem roteiro. E o autor não tenta organizar o caos — apenas desenhá-lo. O resultado é uma obra que incomoda, emociona e, acima de tudo, fica com você depois que termina.

Crítica – Pecadores surpreende com vampiros, trilha sonora marcante e Michael B. Jordan em dose dupla

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O cinema de terror está sempre à procura de algo novo — e Pecadores entrega exatamente isso. Com uma mistura ousada de drama psicológico, horror sobrenatural e uma inesperada integração da música como fio narrativo, o longa não só surpreende, como também firma sua identidade própria dentro do gênero.

A trama gira em torno de dois irmãos gêmeos, interpretados com maestria por Michael B. Jordan, que decidem retornar à sua cidade natal em busca de redenção e um recomeço. No entanto, ao invés da paz, são confrontados por forças malignas que os arrastam para um verdadeiro pesadelo. A atuação de Jordan é um espetáculo à parte — ele entrega performances tão distintas para cada irmão que, por momentos, esquecemos que se trata do mesmo ator. É uma transformação completa, nos trejeitos, na voz, nas expressões. Um trabalho digno de premiação.

O roteiro, ainda que comece em ritmo mais lento, se revela uma escolha acertada. Esse tempo inicial serve para estabelecer uma forte conexão emocional com os personagens, tornando os momentos de horror ainda mais intensos e significativos. Quando o caos se instala, o espectador já está totalmente imerso.

Outro destaque surpreendente é a forma como o filme incorpora o humor. Leve, pontual e jamais deslocado, ele serve como respiro entre as cenas mais densas, equilibrando o tom sem comprometer a tensão. Mas o verdadeiro diferencial de Pecadores está em seu uso criativo da música. As sequências musicais não apenas embalam a narrativa, mas ditam o ritmo das cenas de terror, criando uma atmosfera única que beira o hipnótico. É raro ver o terror dialogar com a trilha sonora de forma tão orgânica e inovadora.

A direção é ousada e visualmente deslumbrante. Cada cena parece cuidadosamente pensada para causar impacto — seja emocional ou visual. A escolha pelo formato IMAX é certeira: a tela gigante amplifica os momentos mais intensos, tornando a experiência ainda mais imersiva e visceral.

Embora elementos da história possam remeter a outros clássicos do gênero, o longa-metragem encontra seu próprio caminho. A abordagem diferente sobre vampiros — aqui tratados de forma simbólica e quase poética — traz frescor a um tema já bastante explorado.

Com um elenco afiado, direção marcante, roteiro sólido e um toque criativo que envolve música e horror como poucos fizeram antes, Pecadores tem tudo para entrar na lista de destaques do ano. E, quem sabe, nas premiações também.

Crítica – Amor Vingado é um drama provocante que expõe as contradições entre orgulho, poder e amor

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Existem séries que começam com raiva e terminam com ternura — e Amor Vingado é exatamente uma dessas. Adaptado do web novel de Chai Ji Dan, o drama chinês parte de uma premissa aparentemente simples — um homem traído que decide se vingar — mas rapidamente revela camadas de ironia, culpa e contradição emocional que transformam o enredo em algo muito mais humano. É uma história sobre o que acontece quando a vingança deixa de ser um plano e se torna um espelho — um reflexo do que o protagonista mais teme em si mesmo.

Wu Suo Wei (Zi Yu) é o tipo de personagem que nasce do ressentimento. Criado em uma família humilde, ele é o homem que a sociedade não espera ver vencer — e quando sua namorada rica o abandona e o humilha, o golpe atinge mais do que o coração: fere o orgulho, a masculinidade e a sensação de pertencimento. Suo Wei, então, decide mudar de vida, abrir seu próprio negócio e provar que pode alcançar o topo sem ajuda de ninguém.

Até aí, tudo parece um drama sobre superação. Mas a série não demora a mostrar que Suo Wei quer algo mais do que sucesso — ele quer revanche. E quando descobre que sua ex agora está com Chi Cheng (Tian Xu Ning), um herdeiro arrogante e mimado, a raiva se transforma em estratégia: ele vai seduzir o novo namorado dela e fazê-lo pagar com o coração.

A vingança como armadilha emocional

O plano de Suo Wei começa como um jogo: ele observa, calcula e manipula. E, por um tempo, o público quase torce por ele — há um certo prazer em ver o rapaz simples virar o jogo contra o mundo dos ricos. Mas a série tem uma carta na manga: ela transforma o manipulador em prisioneiro do próprio plano.

Conforme o relacionamento entre os dois se intensifica, Suo Wei descobre que não se pode brincar com o coração sem se ferir também. A suposta sedução vira um labirinto de sentimentos reais, e o público sente junto com ele o desconforto de perceber que o amor pode nascer do engano.

É aqui que o roteiro se destaca: ele não idealiza o romance, nem tenta limpá-lo. Ao contrário, a série se alimenta da ambiguidade — da culpa, do desejo, do medo de admitir que algo genuíno está florescendo no terreno da mentira.

Chi Cheng: o herdeiro que surpreende

Se Suo Wei é o cérebro do jogo, Chi Cheng é o seu ponto cego. O herdeiro, interpretado por Tian Xu Ning, começa como um clichê ambulante: bonito, arrogante, superficial. Mas a série o trata com empatia, mostrando que sua arrogância é, na verdade, uma forma de defesa.

O que poderia ser apenas uma caricatura de “rico mimado” se transforma em um personagem complexo — alguém que aprendeu a se proteger do mundo com cinismo, mas que, ao conhecer Suo Wei, começa a desmontar as próprias armaduras. A química entre os dois é intensa, mas nunca gratuita: há afeto, tensão, provocação e uma vulnerabilidade palpável que atravessa o olhar dos dois atores.

Entre o amor e o ego

O que faz Amor Vingado se destacar entre tantos dramas românticos é o fato de que ele não tem medo de ser desconfortável. A série fala sobre amor, sim — mas também fala sobre ego, poder e identidade. O romance entre Suo Wei e Chi Cheng não é construído para agradar; é um campo de batalha emocional onde cada um tenta dominar o outro, e acaba se perdendo no processo.

O público é convidado a assistir à desconstrução dos dois: o homem que queria se vingar descobre o amor; o herdeiro que se achava intocável aprende a ser vulnerável. Nenhum dos dois sai ileso — e é exatamente isso que torna a série tão humana.

Um romance que questiona mais do que responde

Amor Vingado é, no fundo, uma história sobre autodescoberta em meio ao caos emocional. A série se recusa a dar respostas fáceis. Ela não romantiza a vingança, nem idealiza o amor; mostra que ambos podem coexistir, se confundir e até se destruir.

E esse talvez seja o maior mérito da produção: ela trata o amor entre dois homens com naturalidade, sem rótulos, sem discurso — apenas como algo que acontece, mesmo quando não deveria. Em um cenário audiovisual ainda conservador, isso já é revolucionário por si só.

Crítica | Meu Bolo Favorito apresenta delicadeza e coragem no retrato do amor maduro em pleno Teerã

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Foto: Reprodução/ Internet

Há filmes que não gritam, mas sussurram verdades tão íntimas que permanecem com a gente muito depois da última cena. Meu Bolo Favorito, dirigido com sutileza por Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha, é um desses encontros raros entre delicadeza e profundidade. Mais do que uma história de amor, é um retrato generoso de uma mulher que redescobre a própria vida quando já parecia não haver mais tempo para surpresas.

Mahin, interpretada com alma pela extraordinária Lili Farhadpour, tem 70 anos e mora sozinha em Teerã. A filha mora longe, na Europa. O marido já não está mais. O cotidiano é silencioso, previsível, quase invisível — como tantas mulheres maduras que passam despercebidas no turbilhão da vida urbana. Mas, num chá da tarde com amigas, algo muda. Um gesto simples, uma conversa banal, e Mahin, quase sem perceber, permite que uma nova possibilidade se aproxime.

E assim, sem grandes arcos ou viradas espetaculosas, o filme nos envolve com a poesia da intimidade. Um novo romance entra em cena — ou talvez seja apenas um encontro, um instante de conexão humana — e Mahin se vê diante do impensável: o direito de sentir desejo de novo, de abrir a porta não apenas da casa, mas do corpo, da memória, da alma.

O que começa como um evento rotineiro logo se transforma numa noite de descobertas — nem sempre suaves, nem sempre fáceis, mas incrivelmente humanas. Porque o amor, quando chega tarde, não chega com ingenuidade: chega carregado de passado, de medo, de delicadezas que só a maturidade entende.

Meu Bolo Favorito se passa em um Irã real, onde as mulheres vivem entre limites e brechas, onde os silêncios dizem mais que mil palavras. Mas o que torna o filme universal é justamente sua capacidade de tocar o que é comum a todas as mulheres: a solidão, o desejo, o medo de envelhecer invisível, a esperança que insiste em resistir mesmo quando tudo parece já definido.

A câmera é íntima, respeitosa, quase cúmplice. Os diretores sabem que o tempo de Mahin é outro — e o ritmo do filme acompanha esse compasso interior. Não há pressa. Há respiro. Há espaço para hesitar diante do espelho, para sorrir sozinha, para lembrar do toque de um amor antigo e se permitir desejar um novo.

E que beleza é ver uma atriz como Farhadpour em um papel tão inteiro, tão digno, tão vivo. Mahin não é uma caricatura de avó fofa, nem uma heroína em luta. É apenas uma mulher — com medo, com desejo, com dignidade — em busca de algo que talvez ela mesma tenha esquecido como é: se sentir viva.

O bolo favorito do título vai além da metáfora óbvia. Não se trata só de sabor, mas de memória afetiva, de pequenos prazeres, de escolhas que fazem sentido para nós e ninguém mais. É sobre retomar o controle da própria narrativa — mesmo quando o mundo já parece ter escrito o final da história.

Crítica | Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda traz de volta o charme do clássico em sequência divertida e nostálgica

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Duas décadas após conquistarem o público com a comédia adolescente Sexta-Feira Muito Louca (2003), Jamie Lee Curtis e Lindsay Lohan estão de volta em Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda, a sequência que resgata não apenas os personagens icônicos Tess e Anna, mas também a magia da fórmula corpo-trocado com uma nova roupagem emocional, atualizada e surpreendentemente madura. Dirigido por Nisha Ganatra e escrito por Jordan Weiss, o filme entrega uma comédia sensível e espirituosa, que respeita o legado do original sem deixar de se reinventar.

Na nova trama, reencontramos Anna Coleman (Lohan), agora adulta, mãe de uma pré-adolescente e prestes a se tornar madrasta. Tess (Curtis), por sua vez, vive uma fase consagrada: avó dedicada, vencedora do Oscar e com a mesma energia controladora de sempre. Quando as engrenagens da vida — e uma nova onda sobrenatural — as colocam de volta no corpo uma da outra, mãe e filha precisam, mais uma vez, se reconectar e repensar suas trajetórias. Só que agora há mais em jogo: duas famílias, gerações diferentes, responsabilidades complexas e um mundo que também mudou.

Ganatra, que tem experiência em projetos sensíveis com apelo cômico (The High Note, Late Night), acerta ao equilibrar o humor característico do primeiro filme com o peso emocional de duas mulheres que se amam profundamente, mas vivem em tempos e papéis distintos. A nova troca de corpos não é apenas um recurso narrativo repetido, mas um espelho para refletir sobre envelhecer, maternar, amar de novo e (re)aprender com o outro.

O carisma que atravessa o tempo

O maior trunfo do filme é, sem dúvida, a química intacta entre Jamie Lee Curtis e Lindsay Lohan. Se, em 2003, ambas entregaram performances hilárias e inesperadamente comoventes, em 2025 elas exibem um entrosamento ainda mais afiado, agora temperado com a bagagem da maturidade — delas enquanto atrizes e das personagens enquanto mulheres.

Curtis continua dominando com facilidade cada nuance cômica, e se diverte ao interpretar uma avó no corpo da filha adulta, enquanto Lohan, em um de seus retornos mais celebrados ao cinema, exibe uma delicadeza que não anula sua veia cômica. Seu timing permanece afiado, e há um brilho nostálgico em vê-la retornar ao papel que ajudou a eternizá-la como uma estrela da geração millennial.

Julia Butters, a jovem atriz revelada em “Era Uma Vez em… Hollywood”, também brilha como a filha de Anna. Ela oferece o contraponto de uma nova geração que assiste ao caos intergeracional com perplexidade, sarcasmo e, claro, uma dose de sabedoria precoce.

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Humor com coração

O roteiro de Jordan Weiss — criadora da série Dollface — opta por não reinventar completamente a roda. A estrutura segue familiar: as protagonistas trocam de corpos, enfrentam situações inusitadas no cotidiano da outra, criam embaraços públicos e finalmente descobrem, através dessa experiência, algo profundo sobre si mesmas. No entanto, o charme do filme está em como essa estrutura é revestida por novos temas.

Questões como envelhecimento, maternidade, luto, reconstrução familiar e até menopausa ganham espaço em meio ao riso fácil. Ao tratar dessas pautas sem perder o humor leve, o filme respeita sua audiência mais velha — aquela que cresceu com o original — ao mesmo tempo que oferece uma porta de entrada acolhedora para o público jovem.

Há cenas memoráveis: um jantar de noivado que descamba em caos corporal e emocional; um momento constrangedor (e hilário) de Tess, no corpo de Anna, tentando usar redes sociais; e uma tocante conversa entre as duas personagens num quarto de hotel, que remete diretamente ao clímax emocional do primeiro filme.

Nostalgia sem ser refém

A nostalgia é um ingrediente inevitável, mas felizmente Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda não se rende ao fan service fácil. As referências ao primeiro longa existem — uma menção ao show de rock adolescente, um flashback discreto, uma piadinha interna sobre a banda Pink Slip — mas funcionam como camadas adicionais e não como muletas narrativas.

Há, inclusive, um mérito na maneira como o filme se posiciona no universo da Disney sem precisar se tornar uma sequência “infantilizada”. Ele é mais maduro, mais introspectivo em certos momentos, e mais emocionalmente ambicioso do que se esperaria de uma comédia familiar padrão. Ainda assim, continua acessível, engraçado e encantador.

O peso da continuidade

Ganatra também acerta ao construir um universo visual que espelha o crescimento das personagens. A casa de Tess é agora mais elegante, mas ainda tem resquícios de sua personalidade controladora. Anna vive em um espaço mais orgânico e desorganizado, refletindo sua nova identidade como mãe e profissional. As escolhas estéticas — desde o figurino até a direção de arte — ajudam a contar a história com riqueza de detalhes, mesmo nos momentos mais caricatos.

A trilha sonora mistura canções atuais com músicas que evocam os anos 2000, criando uma ponte afetiva com o passado, mas sem parecer datada. A montagem tem ritmo ágil e preciso, fazendo com que mesmo os momentos mais absurdos pareçam verossímeis dentro da lógica do filme.

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Uma comédia com identidade própria

Ao final, o longa-metragem entrega exatamente o que promete — e mais um pouco. É um filme sobre família, sobre crescer e reaprender, sobre ceder espaço e retomar a escuta. Faz rir com sinceridade, emociona com suavidade e, principalmente, reafirma o poder do cinema de ser um reencontro: entre mãe e filha, entre gerações, entre atores e suas plateias.

Jamie Lee Curtis e Lindsay Lohan provam, mais uma vez, que carisma não tem prazo de validade. E que, sim, às vezes o raio cai duas vezes no mesmo lugar — e quando isso acontece com talento, empatia e propósito, só nos resta agradecer.

Crítica | Apocalipse nos Trópicos é um retrato do Brasil atual

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Petra Costa nunca foi uma diretora que se escondeu atrás da neutralidade. Com Democracia em Vertigem (2019), ela já havia exposto seu olhar sensível e politicamente engajado sobre o colapso da democracia brasileira. Em Apocalipse nos Trópicos, sua nova investida documental que estreou nesta segunda (14) na Netflix, a cineasta vai ainda mais fundo — e mais fundo aqui também significa mais escuro, mais perturbador, mais corajoso.

Desta vez, Petra não foca apenas nos bastidores da política institucional. O que está em jogo agora é o casamento entre fé e poder, mais especificamente a ascensão das igrejas neopentecostais como uma força política organizada e decisiva no Brasil contemporâneo. O epicentro desse terremoto ideológico é Silas Malafaia, figura central no documentário — e símbolo vivo da mistura explosiva entre autoritarismo religioso, populismo e um projeto de dominação cultural.

Um protagonista sem máscara

Petra não precisa desmascarar Malafaia — ele faz isso sozinho, com uma desenvoltura perturbadora. Dentro do próprio jato particular, pilotando uma BMW, vociferando ofensas contra um motociclista, ou discursando ao lado de Jair Bolsonaro, o pastor é filmado com acesso surpreendente, quase íntimo. E talvez seja isso o mais assustador: sua tranquilidade diante da câmera, sua certeza absoluta, a crença inabalável de que está certo — mesmo quando seu discurso transborda intolerância, arrogância e desprezo pela diversidade humana.

Há algo de perverso no carisma de Malafaia, e Petra registra isso sem histeria, mas com um incômodo crescente. Ele grita, zomba, ataca minorias, debocha da imprensa, e ainda assim se apresenta como “homem de Deus”. O que Apocalipse nos Trópicos revela, com precisão dolorosa, é o quanto essa retórica violenta encontrou eco num país onde milhões de pessoas sentem-se abandonadas, desorientadas, e carentes de líderes com respostas prontas — mesmo que essas respostas venham cheias de ódio.

Uma nação em transe

Petra conecta, com lucidez e indignação contida, o crescimento da bancada evangélica, a campanha de desinformação nas redes sociais, a figura de Bolsonaro como “ungido”, e o desfecho trágico do 8 de janeiro de 2023 — quando extremistas invadiram as sedes dos Três Poderes, sob a bênção simbólica de um discurso antidemocrático alimentado há anos.

É impossível assistir ao documentário e sair ileso. A sensação que fica é de um Brasil à deriva, tomado por um messianismo fabricado, onde o nome de Deus serve de escudo para práticas que nada têm de espirituais. A câmera de Petra, mesmo sem grandes recursos visuais, constrói um mosaico de ruínas emocionais e morais. E não há vilões caricatos — há seres humanos que escolheram, conscientemente, o caminho do autoritarismo.

A ousadia de continuar

Apocalipse nos Trópicos é um filme incômodo, provocador e profundamente humano. Petra não se coloca como juíza — ela se posiciona como cidadã, como filha, como artista que não aceita calar diante do retrocesso. Sua narração continua melancólica, mas agora com um tom de exaustão. Como se dissesse: “nós avisamos”. A esperança existe, mas está fraturada. E talvez seja esse o sentimento mais honesto que o filme nos deixa.

Em tempos de normalização do absurdo, Petra Costa tem a ousadia de continuar documentando a barbárie. E faz isso com a serenidade de quem entende que o cinema é mais do que entretenimento — é também memória, denúncia e resistência.

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