Crítica – Hamnet: A Vida Antes de Hamlet é um retrato delicado e profundo do luto como permanência

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Foto: Agata Grzybowska/ FOCUS FEATURES LLC

Hamnet: A Vida Antes de Hamlet chega aos cinemas em 2025 como uma das adaptações literárias mais sensíveis dos últimos anos. Baseado no romance homônimo de Maggie O’Farrell, o longa dirigido por Chloé Zhao se distancia conscientemente do biográfico tradicional para construir um estudo íntimo sobre perda, amor e memória. Em vez de narrar feitos históricos ou glorificar o mito em torno de William Shakespeare, o filme escolhe observar o que permanece quando a tragédia já aconteceu e quando a ausência passa a reorganizar silenciosamente a vida dos que ficam.

A abordagem de Zhao é contida e profundamente humana. O luto, aqui, não se manifesta por grandes explosões emocionais ou discursos explicativos. Ele se instala nos gestos cotidianos, nos silêncios prolongados, na maneira como o tempo parece desacelerar após a perda de um filho. A morte de Hamnet não é tratada como um evento isolado, mas como uma força invisível que atravessa cada relação, cada espaço e cada escolha dos personagens.

No centro da narrativa estão Agnes e William Shakespeare, interpretados com notável sensibilidade por Jessie Buckley e Paul Mescal. O casal não representa apenas duas figuras históricas, mas duas formas radicalmente distintas de atravessar a dor. Agnes estabelece com a natureza uma relação de profunda intimidade. Seu vínculo com a terra, as plantas e os ciclos naturais carrega um misticismo orgânico que nunca soa artificial ou exótico. Trata se de uma espiritualidade silenciosa, construída a partir da escuta e da observação, que transforma o ambiente ao redor em extensão de seu mundo interior.

Jessie Buckley entrega uma das atuações mais marcantes de sua carreira. Sua Agnes carrega o luto no corpo, no olhar e até na respiração. Cada movimento parece atravessado por uma dor contida, nunca verbalizada em excesso. Buckley constrói uma personagem que comunica mais pelo silêncio do que pela palavra, transformando gestos mínimos em expressões de um sofrimento profundo e persistente. Sua presença em cena sustenta emocionalmente o filme e dá densidade a cada momento de recolhimento e resistência.

Paul Mescal, por sua vez, interpreta um William Shakespeare menos mítico e mais humano. Distante da imagem do gênio inspirado, seu personagem encontra na escrita uma tentativa de sobreviver à perda. A arte surge não como fuga, mas como um espaço de permanência. Ao escrever, William não busca apagar a ausência do filho, mas dar forma a ela. A criação artística se apresenta como um gesto de amor, um meio de manter viva uma presença que já não existe fisicamente.

Jacobi Jupe, no papel de Hamnet, oferece uma atuação delicada e luminosa. Sua presença em cena é breve, mas profundamente marcante. O jovem ator constrói um personagem que ocupa o filme com uma naturalidade comovente, como se desde o início anunciasse a falta que deixaria. Mesmo após sua saída da narrativa, Hamnet continua presente, não como lembrança explícita, mas como ausência constante que molda o comportamento e as emoções dos demais personagens.

A direção de fotografia desempenha um papel fundamental na construção da atmosfera do filme. A luz natural, os enquadramentos contemplativos e o ritmo paciente da câmera acompanham os estados emocionais dos personagens com precisão. Cada plano parece carregado de memória e de tempo, criando imagens que não explicam o sentimento, mas o experimentam junto ao espectador. A natureza não funciona apenas como cenário, mas como espelho emocional do que não pode ser dito.

Narrativamente, Hamnet: A Vida Antes de Hamlet opta por uma estrutura que privilegia a experiência sensorial em detrimento da linearidade clássica. O filme confia na capacidade do público de sentir e interpretar, sem recorrer a explicações excessivas. Essa escolha pode desafiar espectadores acostumados a narrativas mais diretas, mas é justamente nela que reside a força da obra. Zhao constrói um cinema que convida à contemplação e à escuta atenta.

Ao transformar a ausência em matéria artística, Chloé Zhao reafirma uma ideia essencial e poderosa. A arte não elimina a dor, mas pode torná la habitável. Em Hamnet: A Vida Antes de Hamlet, o cinema se apresenta como espaço de escuta, memória e permanência. Um filme que não busca consolar, mas compreender. E que, ao fazê lo, permite que o amor não desapareça, apenas encontre uma nova forma de existir.

Crítica | “Quarteto Fantástico – Primeiros Passos” é um recomeço corajoso, imperfeito e estranhamente poético para a Primeira Família da Marvel

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Foto: Reprodução/ Internet

“Ele não é como a gente. Ele é mais.” Essa frase, dita em um momento chave de Quarteto Fantástico – Primeiros Passos, sintetiza a ambição do filme: tentar reimaginar heróis exaustos por adaptações falhas com um olhar que seja, finalmente, mais. Mais maduro. Mais humano. Mais à altura do que o público sempre quis ver nessas figuras que, embora cósmicas, nasceram da intimidade disfuncional de uma família.

Dirigido com competência e senso de estrutura por Matt Shakman, o novo Quarteto Fantástico entrega, acima de tudo, funcionalidade. E isso, vindo de um histórico cinematográfico que inclui um desastre de 2015 e uma tentativa esquecível em 2005, já é motivo de celebração. Mas o filme vai além do básico. Ele entrega um frescor emocional inesperado, uma sobriedade elegante e até um toque poético que confere ao longa sua própria identidade dentro do saturado Universo Marvel.

Um drama quase existencial por trás das malhas e poderes

Diferente de outras produções do MCU, que se apoiam demais em piadas ou explosões, Primeiros Passos tem um ritmo que beira o contemplativo em certos trechos. A formação da equipe não é tratada como um grande evento, mas como uma consequência melancólica de decisões tomadas por amor à ciência — e, muitas vezes, por medo de envelhecer no anonimato.

Reed Richards (interpretado com precisão nerd, mas emocionalmente acessível por Pedro Pascal é o centro gravitacional do grupo — o cérebro que sonha alto demais. Sue Storm (vivida por Vanessa Kirby é mais do que a esposa do cientista: ela é um ventre metafórico e literal para o futuro. A comparação que o filme faz entre um buraco negro em expansão e a dilatação uterina durante o parto pode soar absurda no papel, mas em cena, curiosamente, funciona. É o tipo de imagem que nos lembra que super-heróis não são apenas armas — são espelhos de nossas esperanças mais primitivas.

Johnny Storm, por sua vez, é um personagem que o filme trata com certa hesitação. Há tentativas de construí-lo como um jovem gênio com instabilidade mental, numa espécie de cruzamento entre Tocha Humana e John Nash (Uma Mente Brilhante), mas essa proposta nunca deslancha por completo. Seu arco parece colado, como se estivesse em busca de um filme próprio. Ben Grimm, o Coisa, sofre ainda mais: sua tragédia pessoal — um homem transformado num monstro de pedra — merecia mais tempo de tela e mais coragem narrativa. O filme insinua seu sofrimento, mas logo recua, como se temesse deixar a sessão de cinema pesar demais.

O tempo, o vácuo e a luta contra o fim

Se há um inimigo real em Primeiros Passos, ele não usa capa nem armadura. É o tempo. Ou melhor: o vácuo. A inevitabilidade do nada. O filme é obcecado por buracos — negros, emocionais, temporais. E nessa obsessão, encontra uma beleza rara. A narrativa é pontuada por imagens que representam o ciclo da existência: bebês em incubadoras, foguetes em lançamento, anéis de acoplamento, cordões umbilicais rompidos pela ciência, pelo destino, pela ambição. Tudo começa e termina em algum tipo de vazio — e o Quarteto é convocado a preenchê-lo com o que há de mais frágil: a esperança.

Não é uma proposta exatamente divertida. Mas é honesta.

O cansaço do gênero… e o sopro de uma resistência

Há quem diga que o cansaço dos filmes de super-herói é inevitável. E talvez seja. Thunderbolts, lançado recentemente, parecia mais um sinal de exaustão do que de reinvenção. Mas Primeiros Passos desafia esse destino com dignidade. Mesmo dentro de um universo já sobrecarregado, o filme encontra espaço para perguntar: o que deixamos para os nossos filhos? Que legado nasce da destruição? Como proteger uma família que nasceu da exposição ao desconhecido?

Nessa perspectiva, o longa se aproxima mais de Os Incríveis do que dos próprios filmes da Marvel. E faz isso sem vergonha. Ao contrário: homenageia, implicitamente, aquela que continua sendo a melhor narrativa cinematográfica sobre super-famílias até hoje. E essa autoconsciência — essa humildade criativa — é um dos grandes trunfos da produção.

Limitações, sim — mas também uma nova promessa

É verdade que o filme peca em momentos importantes. O segundo ato é acelerado, sem o aprofundamento emocional que o primeiro promete. Há uma certa pressa em resolver conflitos, como se o roteiro ainda estivesse tentando atender a checklists impostos pelo estúdio. A química entre os quatro protagonistas funciona mais pela ideia do que pela execução. E, claro, a ausência de um vilão realmente memorável (o retorno de Victor Von Doom, embora estilizado, é tímido) impede que o clímax atinja sua potência máxima.

Mas talvez isso seja parte do projeto. Primeiros Passos parece menos interessado em criar um épico definitivo e mais em assentar bases sólidas para um futuro — algo que as adaptações anteriores jamais conseguiram.

Um recomeço com alma

Quarteto Fantástico – Primeiros Passos não é perfeito, nem revolucionário. Mas é humano. E, neste ponto da história do gênero, isso já é quase um milagre. Ao optar por um tom mais contemplativo, por metáforas inesperadas e por perguntas incômodas, o filme se aproxima de uma nova linguagem dentro do cinema de super-heróis — uma linguagem que não despreza o espetáculo, mas que coloca o afeto e o significado no centro da cena.

Crítica | Invocação do Mal 4 – O Último Ritual tem despedida digna, mas sem assustar como antes

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A franquia Invocação do Mal se tornou uma grande referência do terror moderno, graças à combinação de narrativas envolventes, personagens complexos e sustos construídos com precisão. Desde o primeiro filme, a série equilibra elementos sobrenaturais com drama humano, criando experiências memoráveis para o público. Ao longo dos anos, incluindo spin-offs e derivados, nem todas as produções mantiveram a mesma força narrativa: algumas se apoiaram mais na reputação da marca do que na criação de cenas realmente impactantes.

Recuperando a esperança: Um encerramento satisfatório

Após Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio (2021), a sensação predominante foi de desgaste. O terror perdeu parte de seu impacto, a carga emocional se diluiu e a narrativa parecia sustentada apenas pelo prestígio da marca. Era difícil acreditar que um novo capítulo poderia resgatar a força inicial da saga. Entretanto, O Último Ritual surpreende positivamente. Embora não alcance a intensidade e originalidade do primeiro filme, o longa apresenta um encerramento mais consistente e atmosférico, oferecendo uma experiência satisfatória para os fãs que aguardavam um desfecho digno.

Ed e Lorraine Warren: O coração da saga

O destaque central permanece no casal Ed e Lorraine Warren, interpretado por Patrick Wilson e Vera Farmiga. A dupla, que se consolidou como coração da franquia, traz humanidade e profundidade emocional ao caos sobrenatural. A química entre os dois é convincente e envolvente, permitindo que o público se conecte com os personagens para além dos sustos, valorizando a narrativa com uma carga afetiva que mantém o interesse durante todo o filme. Em uma franquia marcada por fenômenos sobrenaturais e terror, essa dimensão humana continua sendo o diferencial que sustenta a série.

Fórmula desgastada e ritmo irregular

Apesar de seus méritos, O Último Ritual evidencia que a fórmula está desgastada. Com duração pouco superior a duas horas, o filme se torna pesado em alguns trechos, sobretudo devido a subtramas que envolvem duas famílias cujas histórias não se desenvolvem adequadamente. O espaçamento irregular entre os momentos de tensão compromete o ritmo e, em certos pontos, gera sensação de arrasto. Um corte mais enxuto poderia ter conferido maior fluidez, garantindo que o desfecho fosse mais coeso e impactante.

Direção de Michael Chaves

A direção de Michael Chaves, embora seja seu trabalho mais competente na franquia, ainda não alcança o nível criativo de James Wan, responsável pelos dois primeiros filmes. Wan demonstrava domínio absoluto sobre a tensão, equilibrando expectativa e revelação, explorando o imaginário do público antes de revelar o terror de forma precisa e eficaz. Essa habilidade, ausente em grande parte do quarto filme, faz falta, embora Chaves consiga criar momentos de destaque. A cena do espelho, em particular, se destaca como uma das mais bem-executadas da série, demonstrando que, mesmo em um capítulo marcado por limitações, a direção consegue surpreender em pontos específicos.

A estética visual da franquia permanece consistente. A fotografia com contrastes marcantes, os enquadramentos cuidadosos e a iluminação estratégica contribuem para gerar medo e desconforto sem depender de sustos previsíveis. Essa atenção ao visual garante continuidade à identidade da série, reforçando a sensação de que o longa é parte integrante de uma narrativa cuidadosamente construída ao longo de mais de uma década.

Despedida digna, mas sem grandeza

No geral, o longa-metragem funciona como uma despedida: elegante, nostálgico e respeitoso com a franquia. No entanto, como obra final, o filme cumpre seu papel sem atingir a grandeza que a série poderia alcançar. A impressão que fica é a de esgotamento criativo, similar ao que se percebeu em Sobrenatural após a saída de James Wan. O terror, que antes provocava medo genuíno, agora se mostra menos impactante, refletindo uma maturidade da franquia que chega ao limite da fórmula.

Invocação do Mal 4: O Último Ritual encerra a saga de forma segura, oferecendo uma conclusão decente, visualmente cuidada e emocionalmente envolvente, mas sem grandes surpresas. O filme preserva a identidade da franquia e honra o legado dos filmes anteriores, mas deixa claro que os recursos narrativos da série já foram amplamente explorados. Para fãs de longa data, é um desfecho satisfatório; para espectadores em busca de sustos inéditos e impacto genuíno, o filme cumpre o papel sem empolgar completamente.

Crítica | Até o Céu se Engana é uma sátira inteligente que transforma humor em crítica social

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Em Até o Céu se Engana, Aziz Ansari prova mais uma vez que o humor pode ser um instrumento poderoso para provocar reflexão. Dirigido, roteirizado e protagonizado por ele mesmo, o longa equilibra comédia, drama e fantasia para explorar um tema urgente: as desigualdades sociais e o autoengano que sustenta o mito da meritocracia.

A trama parte de uma premissa engenhosa: Gabriel (Keanu Reeves), um anjo encarregado de salvar motoristas distraídos, decide interferir na vida de um homem pobre e desiludido (Ansari). Movido pela curiosidade e por um impulso de compaixão, ele troca o destino do rapaz com o de um milionário inconsequente (Seth Rogen). O gesto, que deveria trazer justiça, acaba revelando as contradições do próprio sistema — e do céu que o observa de cima.

Ansari, com seu estilo característico de humor inteligente e autocrítico, constrói uma narrativa que lembra clássicos como Feitiço do Tempo e Quero Ser Grande, mas com uma pegada muito mais ácida e contemporânea. Aqui, a fantasia não serve como fuga, e sim como lente: por meio da troca de lugares, o filme desnuda a fragilidade dos discursos otimistas e a superficialidade das soluções mágicas para problemas estruturais.

Keanu Reeves é uma das grandes surpresas do elenco. Seu anjo Gabriel mistura serenidade e vaidade, o que o torna um personagem fascinante — um ser celestial que, ao tentar fazer o bem, acaba expondo o quanto até o altruísmo pode ser atravessado por ego. Já Seth Rogen, no papel do homem rico desconectado da realidade, encarna o privilégio com naturalidade desconcertante.

Mas é Keke Palmer quem oferece o contraponto mais potente da história. Como Elena, uma trabalhadora que tenta criar um sindicato e vê seus esforços frustrados, ela representa a voz da consciência coletiva. Em uma das cenas mais marcantes, quando o protagonista tenta consolá-la com frases de autoajuda, Elena o interrompe com uma resposta seca e lúcida: “É fácil falar quando se está no topo.” Essa fala resume o coração do filme — a crítica à ilusão de que basta acreditar para vencer um sistema que foi feito para poucos.

Visualmente, Até o Céu se Engana é simples e eficaz. Ansari evita o espetáculo e aposta em uma direção contida, focada nas relações e nos diálogos. A trilha sonora acompanha esse tom, alternando momentos de leveza e melancolia, enquanto o roteiro alterna o riso e o desconforto com precisão.

O grande mérito do filme está na sua coragem de rir daquilo que normalmente é doloroso. Ansari não oferece soluções fáceis, tampouco vilões caricatos — apenas pessoas tentando encontrar sentido em um mundo desigual. O resultado é uma comédia existencial, crítica e humana, que diverte sem deixar o público escapar ileso.

Até o Céu se Engana é uma sátira social disfarçada de comédia leve, uma fábula sobre empatia e poder que nos lembra: às vezes, o céu erra — mas é nos erros, e nas trocas improváveis, que a humanidade pode se reconhecer.

Crítica | Downton Abbey: O Grande Final é uma despedida elegante e emocionante

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Desde sua estreia na televisão, em 2010, Downton Abbey conquistou uma legião de fãs ao combinar dramas pessoais, transformações sociais e grandes acontecimentos históricos. Este terceiro longa, que marca o encerramento definitivo da narrativa, chega carregado de expectativa — e também de melancolia, já que cada cena parece carregar o peso de um adeus.

O filme, como era de se esperar, é atravessado por uma sensação de despedida. Há momentos leves e engraçados, mas a atmosfera predominante é de melancolia, intensificada pela ausência de Lady Violet, interpretada pela insubstituível Maggie Smith. Embora sua memória seja evocada em diferentes momentos, nada substitui a presença magnética da personagem que, por anos, simbolizou o espírito mordaz e sábio de Downton Abbey. Essa ausência acentua ainda mais o tom de conclusão que permeia a obra.

Diferente dos filmes anteriores, O Grande Final não se preocupa em abrir novas tramas ou criar mistérios para o futuro. Sua proposta é clara: encerrar histórias e oferecer desfecho aos personagens que acompanhamos desde 1912, ano em que a saga começou, até a década de 1930. Isso aproxima o filme mais de um episódio estendido da série do que de uma produção cinematográfica independente. Para alguns, essa escolha pode soar anticlimática; para outros, trata-se de uma decisão honesta, coerente e respeitosa, já que prolongar artificialmente a narrativa correria o risco de desgastar a memória da série.

Visualmente, o filme continua deslumbrante. Os figurinos, sempre um dos pontos fortes da produção, atingem aqui um patamar fascinante, com vestidos e trajes típicos dos anos 1930 que marcam de forma elegante a passagem do tempo. Entretanto, a fotografia nem sempre acompanha essa excelência. Muitas cenas internas parecem excessivamente sombrias, e apenas as externas trazem a luminosidade necessária para equilibrar o tom melancólico da narrativa. Esse contraste funciona em alguns momentos, mas evidencia certa irregularidade na direção de arte e iluminação.

A quem este filme se destina? Claramente aos fãs mais fiéis. O primeiro longa, de 2019, ainda podia ser apreciado por quem não conhecia a série. O segundo exigia certo conhecimento prévio. Este terceiro, por sua vez, funciona quase como uma carta de despedida: não há apresentações nem explicações. A narrativa flui naturalmente na vida dos Crawley, e cabe ao espectador estar preparado para acompanhar sem mapas ou resumos.

O roteiro, embora eficaz em seu propósito, não está livre de falhas. Algumas escolhas parecem artificiais, como o romance mal construído em torno de Lady Mary, que pouco acrescenta à trama. Outros personagens, como Lord e Lady Merton, ganham apenas breves aparições. Por outro lado, há momentos de delicadeza que compensam essas lacunas. A amizade entre Tom e Thomas funciona como um aceno metalinguístico, já que os intérpretes são próximos na vida real. A relação entre Thomas Barrow e Guy Dexter, embora carregada de certo ar de queerbaiting, é trabalhada com sutileza e transmite um romantismo inesperado, culminando em um final que celebra o amor em suas múltiplas formas.

Não deixa de ser frustrante a ausência de personagens importantes. Lady Rose e Atticus não são mencionados, o Dr. Clarkson desaparece sem explicações, e Lady Rosamund, irmã de Lord Robert, não aparece nem mesmo em uma trama situada em Londres. Essas lacunas soam incoerentes, especialmente para quem sempre valorizou a consistência dos arcos de Downton Abbey. Por outro lado, há acertos nas pequenas menções a personagens secundários, como o pai de Joseph Molesley, que dão ao público a sensação de continuidade e respeito ao legado da série.

Entre as boas surpresas, destaca-se Daisy, que finalmente encontra sua voz. Depois de seis temporadas e dois filmes, a jovem criada conquista espaço e protagonismo, marcando sua trajetória com a firmeza que os fãs esperavam. É um momento simbólico e necessário, que reforça a ideia de transformação social que sempre esteve no cerne de Downton Abbey. Curiosamente, Lady Cora segue sem fios de cabelo branco, destoando da passagem natural do tempo, enquanto as crianças permanecem meros figurantes, um desperdício narrativo que poderia ter renovado a trama.

Downton Abbey: O Grande Final não é um espetáculo arrebatador nem um clímax cheio de surpresas. É, antes, um tributo. Um filme que prefere a delicadeza ao choque, a nostalgia ao suspense. Essa escolha pode decepcionar quem esperava mais ritmo e intensidade, mas entrega exatamente aquilo que promete: a chance de dizer adeus. Ao encerrar sem exageros ou prolongamentos desnecessários, o longa preserva a integridade da obra e evita transformar uma despedida digna em algo arrastado.

O resultado é uma conclusão doce-amarga, capaz de emocionar sem se tornar excessivamente melodramática. Um adeus definitivo, mas também um gesto de respeito ao público que acompanhou a saga durante anos. Depois de seis temporadas e três filmes, Downton Abbey chega ao fim de forma elegante, com o cuidado de quem sabe que já disse tudo o que precisava. Resta a saudade, mas também a gratidão por ter feito parte dessa história que marcou gerações.

Crítica | Faça Ela Voltar é um terror cruel que rasga a alma

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Faça Ela Voltar, dirigido pelos irmãos Justin e Aaron Philippou, não é um filme para espectadores que buscam conforto ou escapismo. Desde os primeiros minutos, o longa impõe uma tensão implacável, mergulhando o público em uma experiência que é, ao mesmo tempo, dolorosa, assustadora e profundamente humana. O terror não surge de efeitos sobrenaturais baratos ou sustos previsíveis: ele surge da realidade do luto, da obsessão e das consequências irreversíveis de decisões movidas pela dor. Este não é um filme que se assiste; é um filme que se sente, que consome e que deixa marcas psicológicas duradouras.

O que diferencia o filme de grande parte do cinema de terror contemporâneo é o modo como ele lida com o sofrimento humano. A narrativa não simplifica a dor nem a transforma em espetáculo. Pelo contrário, ela é meticulosamente construída para que cada momento de angústia seja tanto plausível quanto esmagador. A sensação constante de desconforto, de tensão e de antecipação é reforçada por uma direção precisa, uma cinematografia calculada e atuações que vão além do convencional. Cada frame é projetado para intensificar a experiência emocional do espectador, tornando impossível desligar-se da narrativa.

O horror que não precisa de monstros

O terror em Faça Ela Voltar não está em figuras sobrenaturais ou monstros externos. Ele reside na psique humana, nas emoções extremas e nas escolhas desesperadas que a dor pode provocar. A trama central gira em torno de personagens consumidos pelo luto e pela obsessão, mostrando como a incapacidade de deixar alguém partir pode se transformar em força destrutiva. O filme não romantiza o sofrimento; ele o expõe em toda sua brutalidade, mostrando que a obsessão não é apenas uma metáfora, mas uma força real e tangível que corrói as relações, a moralidade e a própria sanidade.

Essa abordagem torna a experiência cinematográfica inquietante de maneira incomum para o gênero. A tensão não é aliviada por diálogos explicativos ou por exposições dramáticas simplistas. Cada ação, cada olhar e cada silêncio carrega peso narrativo. O horror psicológico não é apenas sugerido; ele é experimentado, sentindo-se no corpo e na mente do espectador. É um terror que não se dissipa quando a sessão termina, permanecendo como uma lembrança incômoda e quase física.

Luto e obsessão: A matéria-prima do medo

O núcleo da narrativa é a exploração do luto e da obsessão. O filme demonstra com clareza que a dor pode se transformar em algo monstruoso, não por natureza sobrenatural, mas por sua intensidade emocional. A história evidencia como o amor e a perda, quando distorcidos pelo sofrimento, podem se tornar forças destrutivas, capazes de derrubar barreiras éticas e transformar a realidade em um pesadelo pessoal.

O roteiro dos Philippou é calculado para gerar desconforto constante, usando a obsessão não como um dispositivo de tensão passageiro, mas como motor de toda a narrativa. Essa obsessão não é uma escolha arbitrária dos personagens; é uma consequência direta do trauma que eles carregam. O filme demonstra, de maneira quase clínica, como o luto não curado pode dominar a vida de uma pessoa, afetar todos ao seu redor e corroer a própria identidade. Cada ato extremo é, portanto, compreensível dentro da lógica da dor, tornando a experiência tanto perturbadora quanto tragicamente realista.

Sally Hawkins: Uma presença insubstituível

Sally Hawkins entrega uma atuação que é, em muitos sentidos, o coração do filme. Sua personagem é uma mãe atravessada pelo luto, que se transforma em agente de destruição e obsessão. Hawkins equilibra fragilidade e ameaça com uma naturalidade rara, fazendo com que o espectador oscile constantemente entre empatia e horror. Cada olhar, cada hesitação, cada gesto transmite profundidade emocional e urgência, e sua presença domina a narrativa sem esforço.

O impacto de Hawkins é amplificado pelo roteiro e pela direção. Ela não precisa recorrer a exageros dramáticos; sua força reside na sutileza e na precisão emocional. A atriz transforma a obsessão e a dor em experiência sensorial, fazendo o público sentir a pressão, a culpa e o desespero da personagem como se fossem próprios. É uma performance visceral, memorável, capaz de rivalizar com algumas das interpretações mais intensas do cinema de terror moderno.

A Maturidade dos Irmãos Philippou

Os Philippou demonstram maturidade e controle narrativo impressionantes. Cada enquadramento, cada movimento de câmera e cada pausa na edição é projetado para maximizar a tensão e a densidade emocional. Eles evitam ornamentos visuais desnecessários, efeitos exagerados e sustos fáceis. Tudo é funcional, e cada elemento serve para aprofundar a experiência de sofrimento, obsessão e medo.

Essa clareza de propósito diferencia Faça Ela Voltar de filmes de terror que dependem de soluções visuais ou narrativas superficiais. Aqui, a violência e o desconforto são resultado lógico do trauma emocional, e não do desejo de chocar o público. A direção é firme e direta, criando uma experiência imersiva que exige atenção total e emocionalmente exaustiva.

Tensão constante

O roteiro do filme é construído de forma a manter a tensão elevada do início ao fim. Não há alívio dramático artificial; cada momento de calma funciona apenas como preparação para novas camadas de desespero. O filme estrutura o suspense de maneira gradual, mas incessante, garantindo que o espectador nunca se desligue da narrativa.

Essa abordagem cria uma experiência imersiva, quase claustrofóbica, que reflete a natureza do luto e da obsessão. O público não é apenas testemunha: ele é cúmplice do sofrimento, incapaz de se afastar ou desligar-se. O ritmo e a intensidade emocional são constantes, e o impacto psicológico não se dissipa facilmente.

Simbolismo e crítica social

Além do terror psicológico, o filme é carregado de simbolismo e crítica social. Ele aborda negligência, abandono, estruturas familiares disfuncionais e incapacidades institucionais de forma crua e direta. O trauma individual se conecta com questões sociais mais amplas: crianças e adultos que crescem sem apoio, famílias que falham em proteger, indivíduos que se perdem na própria dor.

O filme sugere que o horror não é apenas pessoal, mas coletivo. As falhas de cuidado, empatia e justiça moldam as trajetórias dos personagens, tornando cada ato de desespero parte de um panorama maior de sofrimento humano. É uma reflexão desconfortável, mas essencial, que amplia o alcance do terror além do pessoal e psicológico.

O luto não tem redenção

Um dos aspectos mais impactantes de Faça Ela Voltar é a rejeição da ideia de redenção ou cura emocional simplificada. O luto é corrosivo, a obsessão é autodestrutiva e a dor não se resolve magicamente. O filme não oferece alívio moral, soluções fáceis ou reconciliações artificiais. O público é confrontado com a realidade crua de que a dor pode consumir totalmente e transformar o amor em violência.

Essa escolha narrativa eleva o filme acima do terror convencional. Ele não apenas provoca medo; ele exige introspecção e coragem emocional. Cada decisão da personagem central, cada consequência de suas ações, é uma demonstração de como a dor pode dominar e deformar a vida humana.

Um filme obrigatório

Faça Ela Voltar é um dos filmes mais impactantes do gênero nos últimos anos. Ele combina roteiro preciso, direção controlada, atuação memorável e profundidade emocional para criar uma experiência que não se esquece facilmente. É perturbador, intenso e implacável. Ele não oferece consolo, mas oferece uma compreensão crua e poderosa do que significa perder, amar e ser consumido pela dor.

Para qualquer pessoa que aprecie terror psicológico de qualidade, Faça Ela Voltar é obrigatório. Não apenas cumpre suas promessas: redefine o que significa sentir medo, empatia e horror ao mesmo tempo. É uma experiência cinematográfica completa, que rasga, incomoda e permanece ecoando muito tempo depois que os créditos terminam.

Crítica | O Último Azul é um filme poético e distópico sobre liberdade e resistência

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O filme O Último Azul se passa em um Brasil futurista e distópico, no qual idosos são enviados compulsoriamente a colônias habitacionais. A justificativa governamental é permitir que os jovens produzam sem “preocupações”, transformando o envelhecimento em mercadoria social. É nesse contexto que surge Tereza, interpretada por Denise Weinberg, uma mulher de 77 anos que decide realizar seu último desejo antes de ser expulsa de casa. A premissa, embora política, é tratada com sensibilidade: o foco do longa está nas consequências humanas do deslocamento e na jornada de autonomia da protagonista, e não no detalhamento burocrático da distopia.

Denise Weinberg é o coração do filme. Como Tereza, ela combina fragilidade e vigor, transmitindo experiência, resistência e autonomia em cada gesto e olhar. Sua interpretação transforma a personagem em um símbolo de força feminina e dignidade na velhice, reforçando que a vida não termina com a idade avançada ou com a opressão institucional. É uma atuação que promete ficar na memória do público, oferecendo profundidade emocional a uma narrativa já potente.

Foto: Reprodução/ Internet

A cinematografia naturalista de Mascaro merece destaque. A Amazônia é retratada quase como um personagem vivo: rios, ventos e árvores não apenas compõem o cenário, mas acompanham a protagonista em sua jornada, reforçando o simbolismo da liberdade buscada por Tereza. A luz natural, as cores e a movimentação da água criam uma experiência visual poética, que dialoga com a narrativa e transforma cada cena em metáfora sobre passagem do tempo, resistência e memória.

O roteiro equilibra drama e lirismo com habilidade. Detalhes do cotidiano — barcos, fraldas, peixes dourados e até tigelas de açaí — funcionam como elementos simbólicos que enriquecem a narrativa e adicionam nuances de humor e reflexão. São pequenos gestos que reforçam a humanidade da história e conectam o público ao universo de Tereza, sem diminuir a tensão da trama.

O elenco complementar, com Rodrigo Santoro e Miriam Socarrás, adiciona densidade e sensibilidade à narrativa. Santoro contribui com intensidade e profundidade, mesmo em participações breves, enquanto Socarrás equilibra a história com humanidade, fortalecendo o impacto emocional do filme sem roubar o protagonismo de Tereza.

Mais do que uma distopia, o filme é uma meditação sobre liberdade, autonomia e dignidade. A jornada de Tereza mostra que resistir à opressão não é apenas uma necessidade individual, mas uma afirmação da humanidade. O filme sugere que liberdade é simultaneamente individual e coletiva, tornando a narrativa relevante tanto para o contexto brasileiro quanto para dilemas universais.

A obra também destaca a capacidade do cinema brasileiro de falar do local para o universal. Ao transformar a Amazônia em espaço simbólico e Tereza em figura de resistência, o filme une crítica social, poesia visual e sensibilidade humana. Há uma atenção delicada aos detalhes, que dá à narrativa textura e profundidade sem sacrificar a leveza poética.

O longa é uma produção promissora, que equilibra estética, crítica social e emoção de forma rara no cinema brasileiro contemporâneo. A combinação de atuação memorável, roteiro sensível e direção poética cria expectativas altas: trata-se de um filme que deve emocionar, inspirar reflexão e permanecer na memória do público muito antes mesmo da estreia. É, acima de tudo, uma obra que reafirma a força do cinema nacional em abordar temas universais com sensibilidade, poesia e humanidade.

Quando chega aos cinemas?

Com estreia marcada para 28 de agosto de 2025, O Último Azul é uma das produções brasileiras mais aguardadas do ano. Dirigido por Gabriel Mascaro e roteirizado por Mascaro e Tibério Azul, o longa-metragem combina ficção científica e drama para explorar questões universais: envelhecimento, liberdade, resistência e memória.

Crítica | Juntos transforma o body horror em um retrato íntimo e perturbador das relações humanas

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Foto: Reprodução/ Internet

Juntos” é uma experiência cinematográfica que surpreende pela ousadia, perturba pela visceralidade e emociona pela crueza com que trata temas universais como amor, identidade e obsessão. O longa, dirigido com notável precisão por Michael Shanks em sua estreia no comando de um longa-metragem, é um exemplo raro de como o terror corporal pode ser utilizado para além do choque visual, funcionando como metáfora potente para a complexidade das relações humanas.

Sem grandes expectativas iniciais, o impacto causado por “Juntos” é justamente sua capacidade de desestabilizar. Trata-se de uma obra profundamente original, que mistura gêneros com uma habilidade incomum. Terror, comédia sombria e drama relacional se fundem em uma narrativa desconfortável, porém extremamente autêntica, com um subtexto emocional que reverbera muito além da última cena.

O enredo gira em torno de um casal vivido por Alison Brie e Dave Franco – que, não por acaso, também são parceiros na vida real – em um momento de inflexão em sua longa relação. Sem entregar spoilers, é possível afirmar que o filme utiliza os códigos do body horror como espelho simbólico de sentimentos como codependência, perda de individualidade e o temor de se diluir completamente no outro. A grotesca transformação física pela qual os personagens passam é, na verdade, uma expressão extrema das tensões emocionais e psicológicas que se acumulam dentro do relacionamento.

Mais do que um filme de sustos ou imagens chocantes, “Juntos” é uma análise profunda e desconfortável sobre o que acontece quando as fronteiras entre o “eu” e o “nós” deixam de existir. É, nesse sentido, um filme corajoso — tanto na forma quanto no conteúdo.

O grande mérito de Michael Shanks está em não se esconder atrás da bizarrice. Pelo contrário, ele encara o grotesco de frente, mas sempre com propósito narrativo. Sua direção combina um olhar estético refinado com uma surpreendente maturidade emocional. A fotografia trabalha com contrastes fortes e tons sóbrios, acompanhando as oscilações entre o grotesco, o humor ácido e a ternura melancólica. A câmera se aproxima dos corpos de forma quase claustrofóbica, captando cada microexpressão, cada transformação, física ou emocional. O resultado é uma sensação constante de sufocamento – não apenas do espaço, mas da própria identidade dos personagens.

A trilha sonora, igualmente precisa, alterna entre melodias etéreas e ruídos dissonantes, amplificando o desconforto sem jamais soar exagerada. É um acompanhamento sonoro que acentua o tom inquietante da narrativa e contribui para a construção de um ambiente emocionalmente instável e, portanto, genuíno.

Outro destaque é a atuação do casal protagonista. Alison Brie e Dave Franco entregam performances corajosas e emocionalmente nuançadas, sustentando a trama mesmo nos momentos mais absurdos e surreais. A química entre os dois transcende a tela e confere autenticidade aos diálogos e gestos. É esse vínculo real que ancora a narrativa e impede que o filme se torne uma simples exibição de bizarrices. Há verdade, há dor, há amor – e é justamente por isso que a experiência se torna tão perturbadora.

“Juntos” é um filme que caminha na corda bamba entre o riso nervoso e o horror genuíno, entre a ternura e o incômodo, entre o drama emocional e a metáfora grotesca. O roteiro é afiado, não recuando diante das partes mais feias e desconfortáveis de uma relação de longo prazo: ressentimentos abafados, concessões mal resolvidas, silêncios que machucam mais que gritos. Mas também há espaço para momentos de carinho e humanidade, que tornam o impacto ainda mais forte quando o horror se instala de vez.

Ao fim, a trama não é apenas um filme de terror. É uma meditação visceral sobre os limites do amor e da convivência, sobre o que resta de nós quando nos entregamos completamente a outra pessoa — e o que pode nascer dessa entrega. É um filme que provoca repulsa e empatia ao mesmo tempo, que assusta não apenas pelo que mostra, mas, sobretudo, pelo que sugere.

Raro, inteligente e emocionalmente desafiador, o filme é um dos exemplares mais ousados e bem executados do terror contemporâneo. Assusta, sim — mas, principalmente, faz pensar. E é justamente aí que reside sua verdadeira força.

Crítica | Os Caras Malvados 2 mantém o charme, refina a fórmula e entrega uma continuação afiada da DreamWorks

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Foto: Reprodução/ Internet

Quando um estúdio de animação decide lançar uma continuação de um sucesso inesperado, inevitavelmente surge a pergunta: vale mesmo a pena revisitar aquele universo? No caso de Os Caras Malvados 2 , a resposta é um sonoro “sim”. Com ares de blockbuster animado, ritmo de comédia policial e um elenco vocal carismático, a nova produção da DreamWorks não só retoma o espírito irreverente do original como se aprofunda em suas próprias qualidades. O resultado é um filme ágil, estiloso e, acima de tudo, consciente de sua missão: entreter sem subestimar o público.

Lançado em 2022, o primeiro filme surpreendeu a todos — inclusive a própria DreamWorks — ao transformar uma modesta adaptação de livros infantis australianos em um fenômeno global. Com um orçamento de cerca de US$ 80 milhões, o filme arrecadou mais de US$ 250 milhões mundialmente, revelando um apetite do público por animações com linguagem pop, estética ousada e tramas que combinam ação, humor e um certo frescor narrativo. Foi um acerto difícil de ignorar — e que o estúdio, sabiamente, decidiu não deixar esfriar.

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Um retorno inteligente e bem planejado

Ao contrário de algumas continuações que parecem feitas às pressas ou motivadas exclusivamente por lucro, Os Caras Malvados 2 demonstra uma preocupação genuína em expandir o universo da história original. O roteiro, ainda que mantenha a leveza e o humor esperados, investe na complexidade das relações entre os personagens e cria novos desafios que evitam a simples repetição da fórmula.

Mr. Wolf, dublado com carisma irresistível por Sam Rockwell, retorna como o líder do grupo de ex-vilões reformados, agora enfrentando o dilema de manter seu novo estilo de vida longe do crime, mesmo quando o passado insiste em bater à porta. Rockwell, mais uma vez, comprova que sua voz tem tanto peso quanto sua presença física, conduzindo cenas com uma naturalidade que torna o personagem ainda mais encantador.

Já Awkwafina, como a hacker Srta. Tarântula, encontra aqui mais espaço para brilhar. Se no primeiro filme sua performance já era divertida, nesta sequência ela se mostra ainda mais afiada, equilibrando ironia e sensibilidade em doses muito bem dosadas. O grupo original continua funcionando com excelente química, e a introdução de novas personagens, como as vozes de Danielle Brooks, Maria Bakalova e Natasha Lyonne, adiciona dinamismo e diversidade à narrativa, sem parecer forçado ou desnecessário.

Estilo visual como identidade narrativa

Um dos grandes trunfos da franquia é, sem dúvida, sua estética. A animação mantém o estilo visual que mistura referências do film noir com quadrinhos modernos, em uma paleta de cores vibrante que garante apelo tanto para o público infantil quanto para adultos que apreciam uma direção de arte criativa. Os traços angulosos, o uso expressivo da luz e sombra, e a fluidez da animação tornam cada sequência visualmente estimulante.

A DreamWorks, aqui, parece determinada a criar um produto esteticamente distinto de seus concorrentes — algo que já havia começado em filmes como Os Croods e Capitão Cueca, mas que em Os Caras Malvados se consolidou como uma assinatura. A sequência abraça essa identidade com ainda mais convicção, utilizando o estilo gráfico para reforçar o tom de fábula urbana, com cenas de ação que remetem a perseguições de filmes policiais e momentos de comédia física dignos de desenhos animados clássicos.

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Narrativa ágil, mas com espaço para emoção

A estrutura da trama é bastante eficiente: o grupo de heróis reformados precisa lidar com uma nova ameaça — interna e externa — que coloca em risco não só sua liberdade, mas também a confiança que conquistaram junto à sociedade. Há uma camada de comentário sutil sobre segundas chances e o estigma da reputação, que embora nunca se torne moralizante, adiciona algum peso emocional à narrativa.

Diferente de muitas continuações que exageram no número de personagens ou subtramas, Os Caras Malvados 2 opta por manter o foco no essencial. A edição ágil e a trilha sonora energética garantem um ritmo constante, mas o roteiro permite pequenas pausas para que o espectador respire junto aos personagens — o que enriquece a experiência sem comprometer a diversão.

Um elenco vocal que é parte vital do sucesso

A escolha do elenco de voz é um dos elementos mais bem acertados da produção. Sam Rockwell está mais à vontade do que nunca como Mr. Wolf, e sua química com os demais integrantes da gangue continua afiada. Craig Robinson (Mr. Shark), Marc Maron (Mr. Snake) e Anthony Ramos (Piranha) oferecem, novamente, atuações vocais que mesclam comicidade e autenticidade.

As adições de Danielle Brooks, Maria Bakalova e Natasha Lyonne ampliam o repertório emocional da história. Bakalova, por exemplo, adiciona uma doçura agridoce à sua personagem, contrastando com a energia explosiva da personagem de Lyonne. Já Danielle Brooks traz uma força calma que funciona como âncora em momentos de conflito. O resultado é um elenco coeso, onde cada voz acrescenta nuance sem competir por atenção.

Trilha sonora e montagem: ritmo em sintonia

A trilha sonora de Daniel Pemberton — também responsável pelo primeiro filme — retorna como um elemento narrativo crucial. O compositor consegue traduzir em música a dualidade entre ação e leveza que define o universo da franquia. São faixas que remetem tanto a filmes de espionagem quanto a desenhos animados modernos, sempre pontuando a ação com precisão e ajudando a criar a atmosfera estilizada que é marca registrada da série.

A montagem segue o ritmo ditado pela trilha. A direção não tem medo de apostar em transições ousadas, cortes rápidos e movimentos de câmera animados que dão vida às sequências mais agitadas. E mesmo nos momentos mais calmos, a animação mantém uma expressividade notável, reforçada pela dublagem e pelo detalhamento nas expressões faciais dos personagens.

Uma sequência que acerta por saber quem é

A animação pode não ambicionar prêmios ou quebrar recordes, mas é exatamente essa sua força. Em vez de tentar reinventar a roda, a DreamWorks opta por polir a fórmula que deu certo — e faz isso com esmero. A continuação entrega uma animação estilosa, ritmada, espirituosa e tecnicamente impecável, que respeita seu público e mantém acesa a chama de um universo que ainda tem muito a oferecer.

Num mercado onde sequências animadas frequentemente soam genéricas ou desnecessárias, Os Caras Malvados 2 prova que é possível sim dar continuidade a uma história com inteligência, criatividade e charme. O resultado é um filme que diverte crianças e adultos, sem perder sua alma ou diluir seu impacto.

E talvez seja isso o mais importante: ao final da sessão, saímos do cinema com a certeza de que, mesmo sendo “caras malvados”, esses personagens conquistaram de vez o coração do público — e isso, convenhamos, é um baita feito para qualquer franquia.

Crítica | Perrengue Fashion combina humor, propósito e temas contemporâneos

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Perrengue Fashion é um daqueles filmes que abraçam a leveza sem abrir mão de uma mensagem relevante. Dirigido com ritmo ágil e olhar pop, o longa estrelado por Ingrid Guimarães e Rafa Chalub aposta na mistura certeira entre humor, crítica social e empatia, entregando uma comédia que dialoga com os dilemas contemporâneos da influência digital, do consumo consciente e da busca por reconexão familiar.

Logo de início, o filme mostra que não é apenas sobre o universo da moda — é sobre o que existe por trás dele. A narrativa acompanha uma mãe influenciadora, interpretada por Ingrid Guimarães em mais uma atuação cheia de timing cômico e carisma, que vive mergulhada em compromissos, likes e parcerias publicitárias. Quando o filho (Rafa Chalub) decide se desconectar e embarcar em uma jornada de autoconhecimento voltada à natureza e à sustentabilidade, o contraste entre os dois mundos se torna o coração da história. A frase que define a essência do filme — “a mãe tá on… e o filho off!” — sintetiza com humor e afeto o conflito entre gerações, estilos de vida e prioridades.

Elenco carismático e química irresistível

Um dos maiores trunfos de Perrengue Fashion está na sintonia entre Ingrid Guimarães e Rafa Chalub. A dupla funciona de forma orgânica, equilibrando espontaneidade, improviso e emoção. Ingrid reafirma seu domínio sobre o gênero da comédia popular, mas também deixa espaço para camadas mais sutis — há momentos em que sua personagem expõe vulnerabilidade e solidão, humanizando uma figura muitas vezes idealizada pelas redes sociais. Chalub, por sua vez, surge como uma revelação promissora: sua presença leve e natural dá frescor ao filme, equilibrando a intensidade da mãe com uma calma introspectiva.

O restante do elenco colabora com uma energia afinada. Os coadjuvantes entram com ritmo preciso, contribuindo para as situações cômicas sem sobrecarregar a trama. Essa harmonia ajuda o espectador a mergulhar em um universo que, embora caricatural em alguns momentos, mantém um pé na realidade dos “perrengues” cotidianos.

Moda, consumo e propósito

O roteiro se destaca ao ir além da simples sátira do mundo fashion. Ele mergulha em temas urgentes, como o impacto ambiental da indústria da moda, o consumo desenfreado e a superficialidade das redes. Mas o faz de maneira leve, quase pedagógica, sem se tornar panfletário. É um equilíbrio delicado: o humor nunca anula a crítica, e a crítica nunca sufoca a diversão.

Há cenas particularmente inspiradas que ilustram bem essa dualidade — como os momentos em que a protagonista tenta manter a pose de influenciadora enquanto enfrenta situações inusitadas fora de sua zona de conforto, em um cenário mais natural e despojado. São nessas que o filme brilha: as risadas nascem da desconexão entre a imagem ideal e a vida real, um território no qual Ingrid Guimarães transita com maestria desde De Pernas pro Ar e Fala Sério, Mãe!.

Humor que flui com naturalidade

O humor de Perrengue Fashion é eficiente e bem calibrado. As piadas funcionam não apenas por causa do texto, mas pela entrega dos atores e pelo timing da direção. Não há pressa em fazer rir — o riso surge de situações cotidianas, de pequenos constrangimentos e de contrastes geracionais. Em alguns trechos, o filme flerta com o exagero, mas rapidamente retoma o tom leve e acessível que o público espera.

Diferente de comédias que se apoiam em bordões ou humor físico excessivo, aqui o riso vem do comportamento — do jeito como os personagens lidam com o mundo e consigo mesmos. Essa escolha dá ao filme um charme particular e uma identidade que o diferencia de outros produtos do gênero.

Esteticamente, o longa é um deleite. A fotografia colorida e o figurino exuberante contrastam com os tons mais crus da natureza, reforçando a dualidade entre o artificial e o autêntico. A direção de arte brinca com os símbolos do universo fashion — passarelas, eventos, filtros e ring lights — enquanto os contrapõe a cenas simples e verdadeiras, criando uma experiência visual que acompanha a transformação dos personagens.

A trilha sonora, repleta de batidas modernas e canções brasileiras contemporâneas, reforça o ritmo leve e jovial da narrativa. Ela traduz a energia de um filme que fala sobre reencontro e desconexão digital sem jamais perder o senso de humor.

Por trás das risadas, o filme propõe uma reflexão sobre o valor da presença — estar realmente disponível para quem se ama, desconectar-se das aparências e reconectar-se com o que é essencial. O filme convida o público a rir de si mesmo, a reconhecer exageros e a pensar sobre o que realmente importa na era das curtidas.

É uma comédia que acerta por não se levar a sério demais, mas também por não subestimar a inteligência emocional de seu público. Há empatia na maneira como a narrativa trata os erros e aprendizados de seus personagens. Tudo é feito com leveza, mas também com propósito.

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