O filme Lobisomem busca se destacar ao adotar uma abordagem minimalista semelhante à de O Homem Invisível, trazendo reflexões sobre violência herdada e raiva masculina. Apesar da ambição, o longa enfrenta dificuldades em desenvolver plenamente suas temáticas centrais, o que limita seu impacto emocional e narrativo.
A história apresenta uma introdução interessante ao explorar a dinâmica familiar do protagonista, mas os diálogos e situações soam um pouco artificiais, prejudicando a imersão do público. Há momentos em que o roteiro poderia aprofundar mais os conflitos e conexões entre os personagens, mas sua execução apressada acaba comprometendo esse potencial.
O elenco conta com o talento de Julia Garner, que tenta imprimir autenticidade à sua personagem, embora esta não receba a profundidade esperada. O filme oferece alguns vislumbres de tensão e mistério, mas o ritmo acelerado, especialmente nos primeiros 30 minutos, prejudica a construção de um vínculo mais forte com a narrativa.
Visualmente, a iluminação escura é usada para criar uma atmosfera sombria, mas, em certos momentos, dificulta a experiência do espectador. No entanto, o esforço para evocar um clima minimalista e intimista é notável. Já no campo do terror, as cenas de gore poderiam ter sido mais ousadas e criativas, mas ainda conseguem entregar alguns momentos intrigantes.
Apesar de suas falhas, Lobisomem é uma obra com ideias interessantes e uma tentativa válida de explorar o gênero de forma diferente. Com ajustes no roteiro e maior cuidado na execução visual, poderia se tornar uma experiência mais impactante e memorável. Para os fãs do gênero, vale a pena conferir, especialmente para apreciar a proposta de um terror mais reflexivo e intimista.
No vasto universo dos filmes de possessão, O Ritual se encaixa em um terreno já bem explorado, mas consegue, ainda assim, deixar uma marca própria. Com fortes influências de O Exorcista (1973), a obra busca equilibrar tradição e inovação ao contar mais uma história de fé, medo e perturbação mental. Apesar de não reinventar o gênero, o longa propõe reflexões interessantes ao fundir elementos religiosos com dilemas da psique humana, criando uma tensão que pulsa entre o sagrado e o profano, entre a crença e o ceticismo.
A narrativa gira em torno de Emma, uma jovem que começa a manifestar comportamentos inquietantes, colocando em xeque a linha entre possessão demoníaca e distúrbios mentais. Essa ambiguidade se torna o fio condutor do filme, e talvez o seu maior trunfo. Diferente de outras produções que apostam na explicação sobrenatural como única via, O Ritual prefere manter o espectador em dúvida — um gesto corajoso que enriquece o suspense e dá profundidade dramática à história.
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A dúvida como protagonista
Ao invés de escancarar a presença de um demônio desde os primeiros minutos, o roteiro opta por uma construção mais contida, deixando que os sinais se acumulem de forma gradual. Gritos noturnos, convulsões, frases em línguas antigas — tudo pode ter explicações médicas ou espirituais, e o filme não se apressa em entregar respostas.
Essa escolha é mais do que um artifício narrativo; é uma proposta temática. O Ritual convida o público a entrar na dúvida junto com os personagens, especialmente com as freiras que cuidam de Emma em um convento isolado. São mulheres de fé, mas também de mundo, que oscilam entre o instinto religioso e o bom senso científico. Essa complexidade nas figuras religiosas foge dos estereótipos comuns do gênero e confere à obra um peso simbólico maior.
Atuações que sustentam a tensão
O elenco, embora discreto, é competente. A jovem protagonista entrega um desempenho intenso e contido, sem cair no exagero comum aos papéis de “possuída”. Há uma angústia silenciosa em sua expressão que torna sua situação ainda mais enigmática. O público não sabe ao certo se está diante de uma vítima de forças malignas ou de uma mente em colapso — e isso funciona.
As freiras merecem destaque. Diferentes entre si em temperamento e fé, elas representam os diversos modos de lidar com o sobrenatural: a que acredita cegamente, a que reluta, a que investiga. Cada uma traz uma nuance ao debate silencioso que se trava dentro do convento. Em um gênero que costuma tratar religiosos como meros instrumentos narrativos, é revigorante ver personagens eclesiásticas com personalidade, dúvidas e humanidade.
Estética e atmosfera: um acerto visual
Visualmente, O Ritual é belo em sua escuridão. Os corredores estreitos do convento, a iluminação natural das velas, os vitrais filtrando a luz — tudo coopera para criar uma atmosfera opressiva e sagrada ao mesmo tempo. Há um cuidado estético que aproxima o longa de um terror mais autoral, quase gótico, evocando sensações que vão além do susto.
Os efeitos visuais cumprem seu papel. Não há abusos em CGI, e os momentos mais “fantásticos” são contidos o suficiente para manter a dúvida plausível. Quando surgem, são bem executados: sombras que se movem sutilmente, objetos que vibram sem explicação, vozes que sussurram em latim. O problema está quando o filme recorre ao manual do terror contemporâneo: corpos se contorcendo, sangue jorrando, olhos virando — cenas que, embora esperadas, destoam da elegância do restante da obra e soam forçadas ou caricatas.
A câmera como inimiga
Se há um ponto que realmente compromete a experiência, ele está na direção de fotografia — mais precisamente na movimentação da câmera. Em muitos momentos, especialmente nas cenas de tensão, o filme opta por uma câmera tremida, próxima do estilo found footage, que pretende intensificar o caos e a urgência, mas acaba apenas desorientando. A intenção é compreensível: mergulhar o espectador na confusão dos personagens. Mas na prática, o excesso dessa técnica tira o foco da cena e pode causar desconforto visual que não tem relação com o horror pretendido.
Em uma obra que aposta tanto na ambiguidade e na construção lenta da tensão, uma câmera mais estática, que permitisse ao espectador observar e refletir, teria sido mais eficiente. A tentativa de copiar fórmulas de sucesso, como em A Bruxa de Blair ou Atividade Paranormal, aqui parece fora de lugar.
Psicologia versus fé: um debate silencioso
O grande mérito de O Ritual é provocar reflexão. Mesmo com alguns deslizes de execução, o filme acerta ao deixar o espectador inquieto, não pelos sustos, mas pelas perguntas. Emma está realmente possuída? Ou é uma vítima do abandono emocional e da pressão religiosa? As freiras são santas ou cúmplices de um ritual de negação da ciência?
Esse embate entre fé e razão — velho como a humanidade — é encenado com certa sofisticação. O filme não oferece respostas fáceis. E talvez por isso incomode tantos. Há espectadores que saem decepcionados justamente por não obterem uma explicação clara. Mas talvez essa seja a maior força da obra: assumir que, em algumas experiências humanas, não há conclusões definitivas.
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A experiência que depende de quem assiste
É curioso observar que grande parte das críticas negativas ao filme vêm de dois tipos de público: os que esperavam um terror mais tradicional, com sustos constantes e vilões claramente definidos; e os que preferem obras mais ousadas e experimentais, como Hereditário ou O Babadook. O Ritual está em um ponto intermediário, o que pode gerar frustração para quem queria mais sustos ou mais complexidade.
No entanto, para quem entra na sala com abertura para um terror atmosférico, que valoriza o não-dito e aposta em simbolismos, o filme oferece uma experiência instigante. Não é uma revolução no gênero, mas é um passo firme em direção a uma narrativa de horror mais madura e introspectiva.
Um ritual que vale o risco
O Ritual não é o melhor filme de possessão já feito — longe disso. Mas também não é um fracasso, como algumas críticas mais duras sugerem. Ele encontra força em sua ambiguidade, constrói uma atmosfera envolvente e conta com atuações competentes, especialmente entre as personagens femininas.
Seu maior erro está em tentar abraçar estilos que não condizem com sua proposta mais reflexiva. A câmera tremida e alguns clichês visuais atrapalham o ritmo e tiram a força de cenas importantes. Mas o saldo final ainda é positivo.
Se você está em busca de um terror que assusta menos pelo que mostra e mais pelo que sugere, O Ritual pode ser uma boa escolha. Assista com calma, com a mente aberta — e com o coração pronto para duvidar do que vê.
A Grande Inundação é um filme que não se contenta em contar uma história linear ou oferecer respostas fáceis. A obra aposta em uma narrativa densa, carregada de simbolismos e reflexões, que se desdobra como um estudo sobre as relações humanas em um mundo cada vez mais mediado pela tecnologia. Com uma abordagem ambiciosa, o longa se lança sem receios em temas existenciais e contemporâneos, buscando compreender o papel do afeto, da consciência e da empatia em uma sociedade que avança rapidamente rumo à automação emocional.
Desde seus primeiros minutos, o filme estabelece um tom contemplativo. A narrativa se constrói com ritmo deliberadamente cadenciado, convidando o espectador a observar, mais do que simplesmente acompanhar. Essa escolha pode afastar parte do público acostumado a estruturas tradicionais, mas se revela coerente com a proposta da obra, que exige atenção, paciência e envolvimento emocional. A Grande Inundação não se explica por completo; ele sugere, provoca e instiga.
No centro da trama está a tentativa de compreender o que nos define enquanto seres humanos quando até mesmo sentimentos, decisões e memórias passam a ser atravessados pela inteligência artificial. O filme não trata a tecnologia como vilã nem como solução definitiva. Pelo contrário, apresenta a IA como um reflexo de nossas próprias contradições, desejos e limites. Ao atribuir às máquinas a capacidade de aprender, interpretar e até simular emoções, o longa levanta questionamentos inquietantes sobre autenticidade, livre-arbítrio e a natureza do amor.
Um dos grandes méritos de A Grande Inundação está em sua recusa a simplificar o afeto humano. O amor, aqui, não é apresentado como algo romântico ou idealizado, mas como uma força complexa, muitas vezes contraditória, difícil de definir e ainda mais difícil de controlar. Em um mundo onde algoritmos tentam prever comportamentos e decisões, o filme reforça a ideia de que o amor permanece como um território instável, imprevisível e profundamente humano. É justamente essa imprevisibilidade que o torna essencial para dar sentido à existência.
As relações entre os personagens são construídas com cuidado e densidade emocional. Os diálogos evitam explicações didáticas e optam por silêncios, olhares e ações sutis, que revelam conflitos internos e dilemas morais. Cada interação carrega camadas de significado, funcionando como extensão das questões centrais do filme. A conexão entre humanos e sistemas artificiais, por exemplo, nunca é tratada como uma curiosidade futurista, mas como uma consequência direta de uma sociedade que busca conforto, controle e pertencimento.
Do ponto de vista técnico, o longa-metragem se apoia em uma direção segura e consciente de sua proposta. A mise-en-scène valoriza espaços amplos e, ao mesmo tempo, opressivos, sugerindo um mundo à beira do colapso emocional e ético. A fotografia contribui para essa sensação, com escolhas de iluminação que reforçam o contraste entre o frio da tecnologia e a fragilidade das emoções humanas. A trilha sonora surge de forma discreta, mas eficaz, acompanhando os momentos mais introspectivos sem manipular a emoção do espectador.
O roteiro demonstra maturidade ao articular debates complexos sem recorrer a discursos explicativos. A inteligência artificial é discutida a partir de suas implicações sociais e filosóficas, e não apenas como ferramenta narrativa. O filme questiona até que ponto delegar decisões às máquinas pode esvaziar a experiência humana e se, ao fazer isso, não estamos abrindo mão de aspectos fundamentais da nossa identidade. Ainda assim, evita um tom alarmista, reconhecendo que a tecnologia também nasce do desejo humano de compreender e melhorar o mundo.
É importante destacar que A Grande Inundação não busca consenso. Sua estrutura aberta e suas escolhas narrativas deixam espaço para interpretações diversas, o que pode gerar leituras distintas sobre suas mensagens. Essa ambiguidade é parte essencial da experiência proposta. O filme entende que respostas definitivas não existem quando se trata de sentimentos, ética e futuro, e transforma essa incerteza em motor dramático.
No panorama atual do cinema, marcado por produções cada vez mais orientadas ao consumo rápido, o filme se destaca por sua coragem em desacelerar e provocar reflexão. Trata-se de uma obra que exige envolvimento intelectual e emocional, oferecendo em troca uma experiência que permanece com o espectador após os créditos finais. Ao abordar a inteligência artificial não como um fim em si, mas como um espelho das nossas próprias escolhas, o filme reafirma a centralidade do afeto e da empatia em um mundo em constante transformação.
Sonho de Trem surge como uma adaptação de notável maturidade estética, que respeita a densidade literária do conto de Denis Johnson e a converte em uma obra cinematográfica de rara delicadeza. O filme encontra seu vigor na atenção aos detalhes, no ritmo contemplativo e na capacidade de transformar gestos mínimos em acontecimentos carregados de significado. É um cinema que não se apressa e, justamente por isso, alcança profundidade emocional e rigor artístico.
A atuação de Joel Edgerton como Robert Grainier é construída com precisão e sutileza. Ele interpreta um homem ordinário que atravessa tempos extraordinariamente duros, marcado pela força do trabalho, pela solidão das longas distâncias e pelas transformações abruptas da modernização. Edgerton conduz o personagem com intensidade contida, estabelecendo um retrato verossímil de alguém que tenta preservar sua humanidade diante de um mundo cada vez mais impessoal e hostil. Sua performance sustenta o eixo emocional do filme e oferece ao público um protagonista silencioso, mas profundamente expressivo.
A narração que permeia a narrativa cumpre um papel essencial. Longe de ser apenas um recurso adaptativo, ela funciona como elemento estruturante, ampliando a dimensão histórica, social e afetiva da obra. A voz serena do narrador costura passado e presente com precisão, oferecendo ao espectador uma compreensão mais ampla do que está em jogo. Ao estabelecer esse diálogo entre memória individual e memória coletiva, o filme reforça sua ligação com a literatura e alcança um equilíbrio raro entre intimismo e crítica social.
A representação da expansão ferroviária é um dos elementos mais contundentes do filme. Sonho de Trem não ignora a violência inscrita no processo de modernização do início do século XX. A devastação ambiental, o deslocamento de comunidades inteiras e a exploração de trabalhadores imigrantes aparecem com clareza e sobriedade. O longa evidencia como o progresso, muitas vezes celebrado, foi construído às custas de vidas invisibilizadas e territórios feridos. Essa crítica se integra organicamente à narrativa, sem perder o foco humano que permeia toda a história.
No coração da trama, Felicity Jones entrega uma interpretação comovente como Gladys Grainier. Sua presença introduz ao filme uma camada de ternura, estabilidade e profundidade emocional. A relação entre Gladys e Robert é construída com cuidado e realismo, sem artifícios melodramáticos, e traduz de forma precisa o afeto que sobrevive aos desafios de uma vida marcada por ausências, trabalho árduo e incertezas. É nesse vínculo afetivo que a obra encontra sua porção mais luminosa.
A fotografia é um espetáculo à parte. A luz natural domina a composição das cenas, preenchendo-as com textura, poesia e autenticidade. Cada tomada parece buscar o encontro entre a beleza da paisagem e a fragilidade humana que nela habita. Essa abordagem estética reforça o tom contemplativo e eleva o filme a uma experiência visual que permanece na memória do espectador.
Sonho de Trem é, acima de tudo, um estudo sensível da condição humana em tempos de mudança. A obra celebra o poder dos silêncios, a importância das pequenas histórias e a força de quem vive às margens do grande curso da história. Com elegância narrativa, precisão técnica e profundidade emocional, o filme se estabelece como uma das adaptações mais refinadas de sua categoria, capaz de honrar o texto original ao mesmo tempo em que cria sua própria identidade cinematográfica.
A adaptação de O Filho de Mil Homens é um projeto ambicioso que, no entanto, revela irregularidades que comprometem sua força dramatúrgica. O roteiro hesita em assumir plenamente o peso emocional do romance de Valter Hugo Mãe; dispersa energia em desvios, alonga conflitos sem necessidade e, por vezes, sacrifica densidade em troca de contemplação vazia. Ainda assim, o filme encontra potência quando decide encarar de frente aquilo que tem de mais genuíno: as feridas abertas de seus personagens.
A solidão como espinha dorsal do filme
Rodrigo Santoro interpreta Crisóstomo com sobriedade, mas sua performance raramente alcança a complexidade anunciada pela campanha de divulgação. Falta à construção do personagem um mergulho mais visceral em sua angústia, em sua carência quase infantil de pertencer a uma família. Em contraponto, Miguel Martines (Camilo) entrega uma atuação de grande sensibilidade, traduzindo fragilidade sem perder presença. Rebeca Jamir, como Isaura, carrega no corpo as marcas de humilhação, violência e resistência; sua atuação se sobressai justamente por não pedir piedade, mas por expor dignidade ferida. Johnny Massaro compõe Antonino como um espelho doloroso do pavor de existir em um mundo que pune quem escapa da norma — e talvez seja ele quem mais deixa marcas.
Juliana Caldas amplia o espectro emocional do longa. Sua personagem vive uma solidão que não é vazio, mas resultado direto das exclusões sociais e da crueldade que se abatem sobre corpos dissidentes. Ela adiciona uma camada de sensibilidade e verdade que o filme nem sempre consegue sustentar em outras frentes.
A solidão, portanto, não surge como um estado contemplativo, mas como um produto estrutural de abandono, rejeição e traumas que atravessam todos esses personagens.
O desejo de pertencer, mesmo quando dói
O filme ganha fôlego justamente quando aborda o impulso — sempre fraturado — de criar laços. Crisóstomo se agarra ao papel simbólico de pai na tentativa de justificar sua própria existência. Camilo anseia por um afeto que o reconheça para além da carência. Isaura procura um espaço onde sua dignidade não seja continuamente violada. Antonino luta para pertencer primeiro a si mesmo, antes que o mundo o reduza a estereótipos.
O pertencimento, aqui, é sempre inacabado, sempre doloroso. É um gesto de procura que retorna como frustração.
Entre revelar-se e esconder-se
A identidade é tratada como um território instável, moldado por vergonha, desejo, culpa e coragem. O filme encontra grande força nessa tensão: o medo de existir por inteiro se mistura com uma urgência desesperada de ser visto. Essa dualidade, presente em todos os personagens, poderia ser ainda mais explorada, mas funciona como um dos motores mais consistentes da narrativa.
Homofobia, violência sexual e imposições sociais
A obra não se furta a temas contundentes — homofobia, violência sexual, abuso psicológico, intolerância religiosa — que atravessam e moldam as trajetórias dos personagens. Ainda que nem sempre aprofundados como poderiam, esses elementos são apresentados com firmeza suficiente para expor o modo como a sociedade cria e perpetua suas violências. O filme mostra, mais do que discute, como essas marcas se transformam em silêncios e cicatrizes permanentes.
O que permanece?
Permanece a dor, permanece a imagem de personagens que continuam ressoando muito depois do fim da projeção. Permanece também a sensação de que, apesar das irregularidades narrativas e estéticas, o filme captura algo essencial: a tentativa de sobreviver emocionalmente em um mundo onde o afeto é escasso e a hostilidade é regra.
Filho de Mil Homens não atinge todo o alcance que promete, mas, quando acerta, acerta no ponto mais sensível — o lugar onde a vulnerabilidade humana revela sua força mais profunda.
Os Cavaleiros voltaram — ou quase. Uma década após o primeiro Truque de Mestre conquistar o público com seu equilíbrio entre charme, truques impossíveis e tramas cheias de reviravoltas, a franquia retorna com uma energia renovada, mas consciente de que o verdadeiro segredo nunca foi a complexidade dos truques, e sim o prazer de vê-los acontecer. Truque de Mestre: O 3º Ato aposta em nostalgia e frescor, colocando as antigas e novas gerações de mágicos frente a frente — e o resultado é um espetáculo despretensioso, mas irresistivelmente divertido.
Nesta nova aventura, o mundo dos ilusionistas entra na era digital. O lendário grupo original — liderado por Atlas (Jesse Eisenberg) — é surpreendido ao ver uma nova geração de golpistas tomando seu lugar nas redes sociais. Charlie (Justice Smith), Bosco (Dominic Sessa) e June (Ariana Greenblatt) se autoproclamam os novos Cavaleiros e reproduzem os truques do passado com tanto carisma que o público mal nota a diferença. Essa releitura cheia de filtros e likes desperta o espírito competitivo do grupo original, forçando uma reunião inesperada e repleta de feridas antigas.
O grande antagonista da vez é Veronika Vanderberg (Rosamund Pike), herdeira de uma dinastia de diamantes e especialista em transformar lavagem de dinheiro em arte. Seu plano envolve um diamante em forma de coração, um símbolo de poder, cobiça e vaidade — um MacGuffin tão vistoso que parece saído de um heist clássico dos anos 2000. Naturalmente, os Cavaleiros decidem roubá-lo — não apenas pelo valor, mas pelo prazer de provar que ainda dominam o jogo.
Sob a direção de Ruben Fleischer, conhecido por Venom e Zumbilândia, o filme assume de vez seu caráter de espetáculo. Fleischer filma com ritmo ágil, cortes precisos e um senso de humor que transforma até os absurdos mais improváveis em momentos de pura diversão. A narrativa é construída como um número de mágica: o que importa não é entender o truque, mas se deixar enganar por ele. Quando as reviravoltas surgem, é quase impossível não sorrir — mesmo quando o roteiro desafia qualquer noção de lógica.
O elenco veterano retorna com energia familiar. Jesse Eisenberg continua impecável como Atlas, mesclando arrogância e genialidade com naturalidade irritante. Woody Harrelson rouba cenas com seu sarcasmo e olhar de “já vi de tudo”, equilibrando o tom cômico e cínico que a franquia sempre cultivou. O restante da equipe segue a fórmula: carisma acima de profundidade. É um time que brilha mais quando está junto do que quando tenta brilhar sozinho.
Já os novos integrantes, liderados por Justice Smith, representam o contraste entre gerações. São influenciadores digitais transformados em mágicos, com truques moldados pela estética das redes — rápidos, superficiais e impressionantes. Essa atualização traz fôlego à narrativa, mas também reforça o subtexto irônico do filme: na era dos filtros e das deepfakes, a verdadeira mágica é fazer alguém acreditar em algo real.
O roteiro, por sua vez, não busca surpreender com originalidade. A estrutura segue o padrão da franquia — um golpe dentro de um golpe, revelações que mudam tudo no último ato, e aquele toque de “ah, era isso o tempo todo”. Mas o que poderia soar repetitivo ganha graça pelo ritmo e pela autopercepção. Truque de Mestre: O 3º Ato sabe rir de si mesmo, e isso o torna mais leve, mais honesto e até mais coerente do que muitos blockbusters que se levam a sério demais.
Visualmente, o longa é um deleite. As cenas de ilusionismo são coreografadas como balés visuais, com truques que misturam tecnologia, edição e efeitos práticos de forma fluida. Fleischer entende que o público não quer realismo, quer deslumbramento — e entrega isso com sobras. Mesmo os momentos mais inverossímeis têm estilo o bastante para justificar sua existência.
No campo temático, o filme toca brevemente em discussões sobre autenticidade, legado e relevância — questões que poderiam render um drama mais denso, mas que aqui aparecem apenas como pano de fundo para a diversão. O recado é simples: em um mundo saturado de ilusões digitais, a magia ainda pode ser uma arte genuína.
O primeiro Truque de Mestre (2013) foi um sucesso inesperado justamente por entender essa simplicidade. Entre críticas mornas e elogios ao ritmo, conquistou o público por ser puro entretenimento — um show de escapismo, brilho e ilusão. A sequência tentou expandir o universo, mas perdeu parte do encanto. Agora, o terceiro capítulo encontra o meio-termo perfeito: nem tão sério quanto o segundo, nem tão inocente quanto o primeiro. Apenas divertido, charmoso e consciente de suas próprias limitações.
Em tempos em que franquias buscam justificar cada sequência com drama e peso excessivo, o terceiro filme faz o oposto: assume que seu papel é entreter. E faz isso com a mesma confiança de um mágico que já conhece as reações da plateia. O truque pode ser o mesmo, mas a execução continua impecável.
Ainda que A Mulher no Jardim não possa ser rotulado como um desastre completo, há uma sensação persistente de déjà vu ao longo de toda a experiência. A trama parece seguir caminhos já trilhados inúmeras vezes, e o roteiro — frágil em sua construção — não oferece novidades nem profundidade emocional suficientes para sustentar as ambições temáticas do longa.
A direção de Jaume Collet-Serra, por outro lado, é a grande força motriz da produção. Com domínio técnico e um olhar apurado para atmosferas densas, o cineasta constrói sequências visualmente impactantes, reforçadas por uma cinematografia elegante e por sustos eficazes, que remetem ao melhor do terror psicológico contemporâneo. Infelizmente, esse brilho técnico contrasta com o vazio narrativo que se impõe cada vez mais à medida que o filme avança.
Há uma tentativa clara de abordar o luto e a insatisfação com os papéis familiares — especialmente o da maternidade — como formas sutis, porém poderosas, de opressão emocional. Contudo, o resultado é confuso e até desconfortável. Ao transformar a doença mental em uma entidade antagonista, ligada diretamente à frustração de uma mulher que quer mais da vida do que apenas cuidar dos filhos, o filme cai em armadilhas narrativas perigosas. Em vez de explorar com empatia os conflitos internos da protagonista Ramona, a obra opta por uma personificação cruel e distorcida do sofrimento psíquico.
Os filhos da personagem principal pouco contribuem para a narrativa além de servirem como catalisadores de sua decadência emocional, sem jamais se desenvolverem como figuras com vida própria. Isso empobrece a dimensão dramática da história e compromete o peso emocional que o roteiro tenta, sem muito sucesso, sustentar.
No fim das contas, A Mulher no Jardim é um filme que impressiona pela forma, mas decepciona pelo conteúdo. Suas intenções são nobres, mas mal executadas; sua estética é refinada, mas aplicada a uma estrutura narrativa previsível, arrastada e emocionalmente desorientada. Não chega a ser uma total perda de tempo, mas tampouco é uma experiência que se recomende com entusiasmo.
Três anos atrás, ao revisitar toda a saga Predador antes de assistir ao mais recente filme dirigido por Dan Trachtenberg, percebi o quanto nutria uma afeição genuína pela franquia. Curiosamente, apesar de composta quase inteiramente por produções medianas, há algo de cativante em cada capítulo — seja pela ambientação, pelo gênero ou pelos personagens. A fórmula nunca mudou de forma radical, mas cada obra conseguia renovar o universo de maneira sutil, evitando a sensação de repetição.
Com Predador: Terras Selvagens, Trachtenberg realiza, finalmente, um desvio significativo. O diretor assume o risco ousado de transformar o próprio Yautja — o Predador — no protagonista da história. Essa escolha redefine a essência da franquia, oferecendo não apenas uma nova narrativa, mas também um olhar inédito sobre o que tradicionalmente era visto como o “monstro” da trama.
Transformar o Predador em personagem central exige mais do que destacá-lo em cena: é necessário explorar seu ponto de vista, desenvolver um arco emocional, conferir propósito e trajetória. O resultado técnico é notável. Embora a criatura continue sendo interpretada por um ator em traje físico, a adição de CGI e captura de movimento ao rosto do Yautja cria expressividade e naturalidade inéditas. Mandíbulas que vibram com a respiração, músculos faciais que reagem sutilmente — pela primeira vez, o espectador sente estar diante de uma criatura viva, dotada de sentimentos e conflitos internos. Essa dimensão expressiva é essencial para a eficácia do conceito, e o filme acerta plenamente ao torná-lo tangível.
O prólogo exemplifica essa harmonia entre forma e conteúdo. O tema central — a natureza da caça e a reflexão sobre o código de honra dos Yautjas — é apresentado de maneira clara, enquanto o roteiro, coerente com o princípio de “escrever sempre com base no tema”, conduz a narrativa com firmeza. Desde as primeiras cenas, é possível antever o percurso do protagonista, mas isso não compromete o impacto da história. Ao contrário, a previsibilidade estrutural é equilibrada pela força simbólica e pela consistência dramática. O filme constrói uma base sólida, que guia o espectador do início ao fim sem perder o rumo.
Em diversos momentos, Terras Selvagens flerta com o gênero de sobrevivência, lembrando uma versão sombria de Avatar, em que fauna e flora se tornam antagonistas constantes. Ainda assim, Trachtenberg evita que o espetáculo visual se sobreponha à narrativa. Ele mantém o foco na essência do enredo, questionando o significado de ser um caçador, o valor da empatia e a possibilidade de transformação.
Essa relação entre instinto e consciência forma o núcleo do filme. Os personagens — cada um à sua maneira — desafiam suas funções e descobrem um propósito além do que foram programados para cumprir. Essa construção narrativa não é mero artifício, mas se conecta diretamente à proposta de Trachtenberg de repensar o mito do Predador.
Do ponto de vista técnico, Terras Selvagens é um filme competente e inventivo. As estratégias e armamentos do clímax são engenhosos, coerentes com o tema e repletos de referências sutis ao filme original. Mesmo os momentos de fan service, quando presentes, soam justificados — nada parece gratuito. Trachtenberg demonstra que homenagear não significa repetir, mas evoluir. Cada escolha estética revela cuidado, propósito e paixão.
Contra todas as expectativas, Predador: Terras Selvagens mostra que ainda há espaço para inovação em uma franquia que parecia esgotada. Ao colocar o monstro no centro da história e tratá-lo com humanidade, o filme amplia o universo e a complexidade da saga. É uma obra audaciosa, coerente e surpreendentemente emocionante, que entrega não apenas ação, mas também uma reflexão sobre moral, instinto e transformação.
“A Lenda de Ochi” é, antes de tudo, uma obra que desafia os moldes contemporâneos do cinema fantástico. Dirigido com precisão sensível, o filme constrói uma atmosfera densa e etérea, enraizada em uma Romênia nebulosa que parece suspensa no tempo — um lugar onde os personagens falam como se tivessem saído diretamente do século XVIII, com sotaques carregados e gestos cerimoniosos. É nesse cenário que o longa ergue sua narrativa: um conto de fadas do Velho Mundo, sombrio e repleto de camadas emocionais.
No centro da história está Yuri, uma jovem que habita um universo masculino onde suas emoções e desconfianças são invisíveis aos demais. Sua relação com Petro, o irmão adotivo que ostenta uma falsa bondade, revela-se apenas nas entrelinhas — nos olhares desconfiados e nos silêncios que dizem mais do que qualquer diálogo. O papel de Maxim, líder dos jovens locais, funciona quase como um narrador vivo, guiando o público por meio de suas falas autoritárias e tradicionalistas. Mas é na introspecção de Yuri que o filme encontra sua alma.
A chegada do enigmático Ochi — criatura silenciosa, ferida e evocativa — é o ponto de virada que liberta Yuri da apatia. A conexão entre os dois é silenciosa e simbólica, representando o despertar de sua própria identidade e desejo de fuga. Ao decidir escapar com Ochi, Yuri arrasta o espectador para um mundo onde o surreal se torna tangível, e a fantasia, uma poderosa ferramenta de resistência.
Visualmente, “A Lenda de Ochi” é um espetáculo artesanal. A escolha por fantoches e criaturas físicas — em vez de efeitos digitais — remete diretamente aos clássicos dos anos 1980, como E.T. – O Extraterrestre e Gremlins, e dá ao filme um charme retrô encantador. O universo criado tem textura, tem peso, tem presença. É palpável e, por isso mesmo, mágico. A trilha sonora minimalista acentua o clima de fábula, sem nunca se sobrepor à narrativa.
Embora muitos espectadores possam estranhar o ritmo contemplativo e o uso limitado de diálogos — principalmente no arco de Yuri —, o silêncio aqui é deliberado. É através da ausência de palavras que o filme revela suas intenções mais profundas: questionar a autoridade, explorar o isolamento feminino e celebrar a liberdade de imaginar.
“A Lenda de Ochi” é um sopro de originalidade que ousa não seguir fórmulas. Não entrega explicações fáceis, não se apressa em agradar. É cinema para sentir, não apenas assistir. E, nesse processo, conquista pela sensibilidade, pela forma e, sobretudo, pela coragem de evocar a magia das histórias de outrora com frescor e alma. Uma pequena joia para quem ainda acredita que os contos de fadas podem, sim, ser sombrios — e libertadores.
Gene Wolfe é um autor frequentemente reverenciado dentro da ficção científica e da fantasia especulativa, e A Sombra do Torturador — primeiro volume da série O Livro do Sol Novo — é tido por muitos como seu trabalho mais emblemático. A obra narra as memórias de Severian, um aprendiz da guilda dos torturadores, que vive em um mundo chamado Urth, uma Terra futura e decadente, onde tecnologia e misticismo coexistem sob um véu de ignorância e tradição feudal.
A premissa é instigante. Wolfe nos introduz a um universo que, à primeira vista, remete à fantasia medieval, mas que aos poucos revela pistas de um passado tecnológico avançado — naves espaciais, alienígenas e ruínas de eras esquecidas aparecem apenas como sombras, memórias distorcidas por milênios. O autor escolhe construir sua narrativa por meio de um narrador pouco confiável, o próprio Severian, que tenta reconstruir sua trajetória com um tom confessional e quase mítico. Isso funciona… até certo ponto.
Um começo promissor que perde o fôlego
A jornada de Severian começa de forma sólida. Ele é curioso, inteligente e visivelmente dividido entre o que aprendeu com sua guilda e o que começa a sentir por conta própria. Quando se apaixona por Thecla, uma prisioneira nobre condenada à tortura, vemos surgir a primeira grande rachadura em sua lealdade — e, teoricamente, o ponto de virada do personagem.
Só que essa complexidade inicial dá lugar a um roteiro repetitivo: Severian segue viagem após ser expulso da guilda, vivendo aventuras episódicas, conhecendo personagens (geralmente mulheres que se encantam por ele sem muito esforço narrativo), dominando habilidades com espadas quase do nada e avançando rumo a um tal “destino grandioso” que nunca se justifica de forma convincente. É como se o personagem passasse de promissor a uma caricatura de herói trágico num piscar de olhos.
Narrativa densa ou apenas dispersa?
Muito se diz que Wolfe é um autor “difícil”. Mas A Sombra do Torturador não é, em si, um livro complicado. Ele apenas exige atenção e, talvez, um dicionário por perto — principalmente porque o autor adota uma linguagem arcaica e evita qualquer glossário ou explicação direta. Isso não é um problema por si só. O que realmente pesa é o ritmo quebrado, o excesso de digressões e o enredo que mais parece um mosaico de cenas do que uma trama que progride.
A escrita, muitas vezes louvada como brilhante, soa ornamental demais após certo ponto, perdendo impacto à medida que Wolfe se afasta da construção dramática inicial e se entrega a um desfile de personagens misteriosos e situações mal resolvidas.
Sexualidade e representação: o velho problema de sempre
Um dos pontos mais desconfortáveis da leitura é o tratamento dado às personagens femininas. Não é apenas o fato de Severian se apaixonar por praticamente toda mulher que encontra — o que, convenhamos, já seria cansativo. É a forma como o autor insiste em descrever constantemente seios, quadris e outras partes do corpo feminino com um olhar quase obsessivo. As mulheres são, em sua maioria, coadjuvantes sexuais, moldadas para se entregar ao protagonista com pouca ou nenhuma construção.
Esse olhar masculino antiquado é algo comum em parte da ficção científica clássica, mas não deveria ser normalizado. Em pleno século XXI, o status de “clássico” precisa ser questionado quando o que se vê é uma sucessão de mulheres bidimensionais e erotizadas ao redor de um protagonista egocêntrico e mal desenvolvido.
E afinal, por que ele está contando essa história?
Outro ponto que enfraquece a experiência é a própria estrutura da narrativa. Sabemos que Severian é um narrador não confiável. Sabemos também que Wolfe, dentro da lógica do livro, se coloca como o “editor” do manuscrito original. Mas… qual o propósito da história que nos é contada? Qual o contexto? Por que deveríamos confiar em qualquer coisa dita? A ausência de pistas ou direção sobre as intenções do protagonista (ou do próprio autor) acaba tornando a leitura frustrante, especialmente para quem não pretende seguir com os outros volumes.